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Paisagens do Íntimo: A Herança de Chantal Akerman no Cinema de Mulheres Latino-Americanas

  • Natália Marchiori da Silva
  • 17 de jun.
  • 8 min de leitura
Fotograma de Jeanne Dielman, 23 Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)
Fotograma de Jeanne Dielman, 23 Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles (1975)

Por Natália Marchiori da Silva | Ensaios


Quais as influências da obra de Chantal Akerman no cinema latino-americano realizado por mulheres? Quando essa pergunta me foi posta, vieram-me rapidamente à cabeça alguns filmes, como La Ciénaga (2001) de Lucrécia Martel, Baronesa (2017) de Juliana Antunes, O Canto das Amapolas (2023) de Paula Gaitán, Casa (2019) de Leticia Simões, entre outros. Ao olhar para esses primeiros filmes que emergiram na memória, percebi que todos eles foram realizados depois dos anos 2000 – mais de trinta anos após o início da carreira da cineasta belga, e vinte e cinco anos depois de Jeanne Dielman, 23 Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). O longa-metragem completou, em 2025, cinquenta anos de sua estreia, sendo reconhecido, em 2023, como o melhor filme do mundo pela revista britânica Sight and Sound


Essas observações me despertaram um novo questionamento, voltado às preocupações e estéticas abordadas pelas cineastas latino-americanas na década de 1970. Se observarmos a produção de diretoras latino-americanas contemporâneas a Chantal Akerman, percebemos que, embora a temática da vida cotidiana das mulheres esteja tematizada, assim como uma forte crítica à sexualidade, à vida doméstica e às estruturas familiares, nessas obras o debate de gênero aparece frequentemente de forma coadjuvante, subordinado às pautas voltadas à esfera pública e às urgências macropolíticas. Nestas obras, as questões sobre a vida cotidiana das mulheres são entrelaçadas as denúncias à censura e violência dos regimes ditatoriais enfrentados na América Latina entre as décadas de 1960 e 1980. Ou seja, o cinema produzido por mulheres nesse período assume uma característica mais imediata e militante, distanciando-se do estilo silencioso e contemplativo que marca a obra de Akerman. 


Se tomarmos como exemplo os longas-metragens Mar de Rosas (1977), de Ana Carolina, e Feminino Plural (1976), de Vera de Figueiredo, encontramos uma profusão de sons e diálogos, montagens aceleradas, atuações mais dramatizadas e teatrais, entre outras diferenças dos clássicos planos em que “nada acontece” no cinema de Chantal Akerman. Se Ivone Margulies (2016) nomeou o cinema da cineasta belga como hiper-realista, o mesmo não se aplica aos filmes citados, marcados por um caráter alegórico, com planos em que TUDO acontece. 


Esta estética, assim como a utilização de recursos documentais que buscavam retratar a realidade cotidiana das ruas, parece ser uma opção mais marcante na cinematografia do período, tanto nas produções brasileiras, quanto nas dos outros países latino-americanos.  Basta olharmos para os filmes de Sara Gómez, os primeiros da carreira de Maria Luísa Bemberg ou os filmes de Busi Cortés, entre outras cineastas que estavam em atividade nessas décadas. Essas diretoras buscavam retratar realidades que são invisibilizadas ao que se refere à vida cotidiana das mulheres, mas, também, realidades de outros grupos ou povos, como os indígenas.


Nesses filmes, as críticas – cotidianas e sociais – são direcionadas aos governos militares e aos modelos políticos vividos na América Latina. Esse gesto, por vezes, aproxima-se mais das preocupações de Agnès Varda, em Uma canta a outra não, do que da abordagem de Akerman em seus filmes, cujas questões de gênero emergem como fruto de uma ideologia patriarcal e capitalista que, a princípio, não estaria localizada unicamente em um partido político. É importante destacar que isso se dá, sobretudo, pelas diferenças geopolíticas, ao conservadorismo e à política de medo implementados pelos regimes ditatoriais. Em um debate sobre o filme Cristais de Sangue (1977), realizado pela Mostra Curta Circuito em Belo Horizonte, a diretora Luna Alkalay comentou que, embora houvesse preocupações de gênero, havia uma urgência maior: a ditadura, a censura, as pessoas sumindo e morrendo. Segundo a diretora, acredita-se que essa demanda pela sobrevivência e liberdade se tornou, para algumas realizadoras, mais urgente do que a representação da vida cotidiana.  


Estas características estéticas, que respondem ao desejo de produzir um cinema político, remetem à larga influência que o cinema latino-americano recebeu do neorrealismo italiano e do cinema direto durante as décadas de 1950 e 1960, como afirma Michel Karrer (2024) e B. Ruby Rich (1992). Esse cinema, profundamente entrelaçado às lutas políticas, volta-se muito mais para as ruas e para a vida civil, em contraste ao olhar dirigido à vida doméstica, privada, como ocorre nos filmes de Akerman. Esta diferenciação se evidencia até mesmo no uso de recursos autobiográficos: em Chantal Akerman eles assumem um tom mais ensaístico, enquanto nos filmes latino-americanos funcionam como parte do argumento, ou testemunho de um momento histórico. Com exemplo, podemos pensar no filme de Helena Solberg, A Entrevista (1966), no qual imagens de arquivo da diretora somam-se ao tema da educação burguesa das mulheres no Rio de Janeiro – disciplina legitimada pelo conservadorismo do regime militar, tal como indicam as imagens da marcha da família durante o AI-5. Tais escolhas estéticas materializam, na própria forma fílmica, um ideal de cinema político, além de indicarem o vínculo desses filmes com os partidos de esquerda e com a resistência contra a ditadura militar. 


Após o fim dos regimes militares, observa-se uma transformação nessas opções estéticas. No início da década de 1990, conforme aponta B. Ruby Rich (1992), há uma virada “estético-política” marcada pela mudança de olhar da exterioridade para a interioridade. Inclusive, ao analisar esse cinema realizado por mulheres após a década de 1990, Michel Karrer (2017) observa que há ainda um interesse em questionar as separações entre esferas (pública e privada), mas, agora, desafiando o velho modelo de pensar a política exclusivamente a partir da esfera pública. A máxima o “pessoal é político” deixa de ser utilizada para abordar leis e direitos, e passa a ser utilizada também para pensar como esse político produz marcas no pessoal, constrói subjetividades, como é o caso da tarefeira Jeanne Dielman, ou outras personagens da filmografia de Chantal Akerman. 


No levantamento realizado para o artigo “Por uma breve história da vida privada das mulheres no cinema ficcional brasileiro de 1950 a 2000” (Veiga; Marchiori,2025) é notável que, com o fim da ditadura militar, a temática da vida cotidiana, familiar e íntima passa a ganhar enfoque, até mesmo nos filmes comerciais. Diferente da tendência de Mar de Rosas ou Cristais de Sangue, em que os personagens e suas trajetórias aludem a figuras reais, como os torturadores e os guerrilheiros, nos filmes que surgem a partir de 1985, os pequenos detalhes, os desejos e as relações interpessoais são a válvula narrativa, como é o caso de A hora da estrela (1985) de Suzana Amaral. Até mesmo nos filmes que acenam para grandes acontecimentos históricos, como Parahyba, Mulher Macho (1983) ou Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), a atenção se volta para os acontecimentos e experiências da íntimas das personagens, aspectos que foram invisibilizados tanto pelos registros artísticos como pelos históricos. Esse novo enfoque anuncia uma característica bastante presente no cinema contemporâneo, que, em sua materialidade passa a incorporar elementos característicos da filmografia de Chantal Akerman, como os planos abertos que molduram a cena e os longos planos-sequência. 


Diante dessas observações, e retomando nossa questão inicial, surge a seguinte hipótese: a influência formal do cinema de Akerman aparece no cinema realizado após os anos 2000 em decorrência das mudanças de paradigma no entendimento do que seria um “cinema político” no contexto nacional. Segundo Ruby Rich, há uma transformação da concepção de imagens políticas, que passa a compreender as imagens cotidianas e domésticas como detentoras de politicidade. Gonzalo Aguilar (2010), no livro Nuevo Cine Argentino, pontua que o foco nos espaços privados e a falta de referências explícitas ao mundo político nas ficções de cineastas como Lucrecia Martel e  Albertina Carri não devem ser confundidas com um descompromisso político, mas sim, como filmes que nos convidam a pensar o sentido de  política, colocando-a como uma “categoria que adquire novas potências e qualidades em um meio cuja função foi radicalmente transformada nos anos noventa" (Aguilar 2010, p. 136, tradução nossa). 


Em relação aos filmes de Lucrecia Martel, Joanna Page escreve: “a aparente retirada para os espaços privados não reflete, principalmente, uma renúncia à política, mas exatamente o contrário: é sintomática de certas mudanças dentro da própria política. Essas mudanças exigem uma modificação das categorias críticas que usamos para falar sobre o cinema político” (Page, 2007, p. 157, tradução nossa). Estas modificações, obviamente, são tributárias das transformações sociais que ocorreram na América Latina com o novo regime democrático e suas relações com o neoliberalismo político. Se pensarmos no filme La Ciénaga, comentado acima, percebemos que a vida familiar, a arquitetura da casa e as dinâmicas trabalhistas que ela comporta revelam questões profundas da política argentina e como ela lida de forma desigual com as diferenças de classe e raça. Neste filme, nenhum personagem se torna alegoria de figuras ou acontecimentos públicos. Ao contrário, exibem pequenos detalhes da vida íntima que evidenciam a incidência de políticas no pessoal. Não há uma opressão ou disciplina explícita exercida por agentes políticos que manifestam seu poder e controle, mas sim, estas normas estão incorporadas nos sujeitos, marcando as formas como esses personagens agem, olham e compreendem o mundo.


Isto também se observa no filme brasileiro Baronesa. O longa-metragem acompanha a vida da personagem Andreia, moradora de uma favela na cidade de Belo Horizonte (MG), que deseja mudar-se para outro bairro (Baronesa) devido à situação perigosa da favela onde se encontra. Ao longo do filme, não são retratados grandes acontecimentos: o que vemos é o dia-a-dia da personagem, seus afetos e momentos com seus dois amigos, Leidiane e Negão. Leidiane é uma menina jovem, mãe de muitas crianças, que ela cuida sozinha, pois o pai está preso. Já Negão é exibido como um cara companheiro e brincalhão, amante de Leidiane, que está envolvido com o crime, o que o leva à morte. Nesse cotidiano vivido por Andreia na favela, cada pequeno detalhe, cada depoimento e conversa é registrado com o mesmo rigor e atenção encontrados nos filmes de Akerman e Martel. Os espaços assumem um papel narrativo fundamental, envelopados de significados e afetos. 


Se em Chantal Akerman o corredor e a sopeira tornam-se símbolos da prostituição de Jeanne, em Martel a piscina concentra sentidos sobre as desigualdades de classe e raça presente entre os patrões e empregados. Já em Baronesa, esses espaços produzem sentidos subversivos e contrários às normas que tentam condicionar os corpos, ainda mais quando nos referimos aos corpos não brancos e periféricos. Ainda pensando a piscina como símbolo, em Baronesa, há uma cena, linda, de Negão e Leidiane tomando banho em uma caixa d’agua transformada em piscina. Esse gesto simples, inventivo, que quebra padrões, revela a resistência daqueles personagens, demonstrando no cotidiano gestos políticos. 


Para que esses pequenos aspectos sejam visualizados e sentidos, os filmes de Martel e Antunes recorrem às imagens distanciadas, aos planos-sequencias longos e abertos e às ações executadas em literalidade. Essas são características marcadas no cinema de Chantal Akerman, assim como a atenção dada aos espaços domésticos, que assumem um caráter ativo na narrativa. Como se a piscina, a caixa d’agua, o quarto, entre outros espaços, produzissem sentidos fundamentais para o engajamento e para o desenvolvimento da trama. Tal como ocorre na obra da cineasta belga, em La Ciénaga e em Baronesa os objetos assumem uma característica animista. 



Referências bibliográficas 


KARRER, Michael, “Género y temporalidades cotidianas en el cine argentino contemporáneo”, en Imagofagia, 16: pp. 9-28, 2017.


______________, No home movies. Usos políticos del archivo familiar en el cine documental de Argentina y Brasil. Madrid, Frankfurt am Main: Iberoamericana Editorial Vervuert, 2024.


MARGULIES, Ivone. Nada Acontece: O cotidiano Hiper-realista de Chantal Akerman. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. 


PAGE, Joanna, “Espacio privado y significación política en el cine de Lucrecia Martel”, en Victoria Rangil (ed.), El cine argentino de hoy: entre el arte y la política. Buenos Aires: Biblos, pp. 157-168, 2007. 


RICH, B. Ruby: “Hacia una demanda feminista en el nuevo cine latinoamericano”, en Debate Feminista, 5: pp. 292-320, 1992.  


VEIGA, Roberta; MARCHIORI, Natália. “Por uma breve história da vida privada das mulheres no cinema ficcional brasileiro de 1950 a 2000”. In Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 37, nº 84, 2025. 

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