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Entre cinzas, mora a mulher que gestou o mundo: EAMI (2022) e a potência do que não podemos ver

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    Ana Clara Mattoso
  • há 5 dias
  • 8 min de leitura

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Por Ana Clara Mattoso | Ensaios


Dos ovos, uma imensidão


No solo árido do Chaco Paraguaio, quase desértico, alguns ovos abandonados pairam à espera de sua irrupção. Carregam em si as vidas que não poderão mais ser eclodidas ali, naquele território que parece conter o princípio e o fim do mundo em um mesmo instante. Mas aquele instante dura eras. Fecunda erupções e abandonos, encontros e desaparecimentos, vida e morte numa transfusão incomensurável, na qual a permanência é definida pela partida. Enquanto os minutos passam, dança a bruma que nos conta sobre a respiração que se tornou o vento, e o vento que virou a canção originária de todos os habitantes do mundo. Entre eles Asoja, um pássaro mitológico que, encarnado em uma mulher, gesta a vida na terra. No mito fundacional dos indígenas Ayoreo Totobiegosode, uma das últimas culturas isoladas em um espaço distinto da Amazônia, tudo se transmuta; a transmutação é o próprio animismo do mundo que respira até que o sopro se torne matéria. 


Então os dias viram noite e a noite é vermelha. O vento ganha densidade, os animais correm, os pássaros voam numa revoada convulsiva, mas os ovos permanecem inertes, sem se alterar. Assim continua por praticamente nove minutos o longo prólogo de EAMI (2022), filme da realizadora paraguaia Paz Encina. O plano fixo assegura que todas as ações aconteçam além dele. No fora de campo, ouvimos a dispersão desesperada dos bichos; escutamos máquinas, apitos; as árvores que gritam, os grunhidos e o ruído desesperado que, ainda assim, não abafam a voz que segue contando a história daquele mundo. Um mundo que havia sido invadido. Na invasão distante, o vermelho do fogo domina o verde da mata sem sua forma jamais ser vista. Mas se não vemos, sentimos. A visão, obliterada, rende-se para que os outros sentidos possam dar contornos à imagem. Possam completá-la, fabulando aquela geografia que recusa o estatuto de paisagem enquadrada por um aparato fotográfico moderno, conclamando-se como um território vivo, um lugar de memórias e espíritos. 


Fechar os olhos para escutar a terra


O que guardam os olhos de Eami? Talvez, todo o seu mundo, sua floresta e as memórias dos seres que nela habitam. Eami, a menina indígena Ayoreo Totobiegosode que conduz o filme homônimo de Paz Encina, é também um pássaro, a criatura mítica Asoja, a primeira mãe da terra. Agora, transmutada na criança cujo mundo está desaparecendo, o que poderá gestar? Com os olhos fechados e as asas feridas, como Eami poderá voar? “Como seguir em frente sem ele?”. Ele, o melhor amigo de Eami. Continuar, apesar da falta provocada pela destruição, me parece o manifesto subliminar tecido por Encina diante das catástrofes sociais e ecológicas de um tempo de ruínas. “Como curar uma ferida que dói tanto?”, a pequena menina continua. Junto das suas perguntas, algumas tentativas de elaboração são entoadas pela voz de seu amigo Lagarto, com quem percorre o território do Chaco Paraguaio em busca de parentes, amigos e animais desaparecidos após a invasão dos coñones, colonos e fazendeiros brancos da chamada civilização. 


Mas os olhos fechados de Eami, ao contrário do que constrói o regime de visualidade moderno, não denotam uma fraqueza ou desejo de escapar. Ao reprimir o olhar, a menina, assim como outros indígenas de sua etnia que não foram capturados, busca intensificar sua visão interna, sua capacidade de visualizar e ouvir não só a voz de quem está distante, mas o som e os caminhos da própria terra. Mais uma vez, o predomínio da visão, um artifício tão dominante na cultura euro-americana ocidental e na filmografia hegemônica, é questionado, restando para nós o escuro de um universo que não pode ser concretizado em imagem partilhada, devendo permanecer secreto. Essa agência do segredo mobiliza a espectadora e o espectador a um tipo de interação háptica com o filme (Marks, 2000), já que a visão não está habilitada a oferecer respostas, a sensorialidade deve ser aguçada para instaurar a imersão. Ao exemplo de Eami e de seus parentes, precisamos habitar aquele território a partir da ausência, das pistas de um extermínio cuja violência não se consuma em um acontecimento isolado. O desaparecimento da família e dos amigos de Eami, humanos e mais que humanos, é uma marca da colonização, captura e dizimação de populações indígenas no Chaco Paraguaio, acentuadas pela chegada de colonos europeus, menonitas e missionários no século passado, projeto desenvolvimentista que desde então desmata a vegetação natural para convertê-la em pasto, extinguindo o bioma e os seres que dele são indissociáveis. 


A extinção, em EAMI, insurge pela sonoplastia e efeitos práticos que atribuem matéria ao invisível. Os espíritos da floresta surgem como a vibração que movimenta a água dos rios, que sopra as folhas das árvores, que invade as casas dos colonos sem que a origem da ação seja vista pelos olhos das espectadoras e espectadores. Vemos apenas o seu efeito, sentimos apenas a sua presença. O mesmo acontece com os rastros dos animais desaparecidos ou extintos, que deixam para trás suas pegadas, seus ninhos, a sombra de seu voo, o som de seu canto, asas batendo, zumbidos e rastejos que compõem a paisagem visual e sonora como um indício de sua existência pregressa naquele território. No entanto, a fuga ou o sequestro, e, nos casos mais extremos, a morte, são indícios revelados pela sofisticada poética de Encina, que concebe o fora de campo como tradutor de uma cosmologia em que a terra acumula memórias de todos os seus seres. Em última instância, soa como um desejo de apontar que mesmo no desaparecimento, algo resta. Algo persiste no ar, na umidade, nas raízes subterrâneas em erupção e decomposição.


Invisível, mas presente como o vento, Eami irrompe enquanto uma personagem que, assim como o mito ao qual se corresponde, adquire diversas formas — corpos materiais e imateriais que convocam a força espectral dos solos latino-americanos. Habitados por uma ancestralidade fantasmagórica que retorna ao ser evocada pelos espíritos da floresta, nossa terra se revolve em oposição à violência de sua expropriação. Em EAMI, o vento, impassível, invade a casa da patroa branca e traz com ele um pássaro que nunca é visto por nós, espectadoras e espectadores, embora sua presença seja inquestionável. Esse vento, que sopra as cortinas e perturba o lar, é o mesmo vento que derruba, cenas depois, a porcelana da coñone no chão, espatifando um dos símbolos da herança colonial.


Quem sabe essa proposição do invisível como força não seja também uma armadilha para capturar os nossos olhos tão acostumados a habitar uma suposta totalidade visual. Tão conformados e entediados com a soberania da visão sobre os outros sentidos. Nessa espécie de feitiço, o olhar repousa oblíquo, restrito a fragmentos visuais que intensificam o campo fabulativo espectatorial. Uma arapuca que também se solidifica como linguagem de uma diretora muito consciente de que o seu cinema opera em oposição aos modos de vigilância dominantes das sociedades modernas. Do panóptico foucaultiano aos drones contemporâneos, impera a visualidade dos senhores de engenho da casa grande que, protegidos pela arquitetura colonial suspensa, tudo veem, tudo escutam, assegurando o olhar como mecanismo de poder nas plantations (Mirzoeff, 2014) que colonizaram nossas terras latino-americanas. Em uma das cenas que retrata os captores jagunços de EAMI, um deles diz ao outro: “Acho que ninguém sobrou aqui. Mantenha os olhos bem abertos”, sinal de que a visão é uma estratégia de guerra. Nesses gestos, Encina parece atualizar a crítica feminista sobre os mecanismos de disputa atrelados ao olhar, expressos sobretudo pelo male gaze, o olhar masculino que subjuga a presença feminina em tela (Mulvey, 2018) — especialmente os corpos de mulheres racializadas, como pulveriza a teórica bell hooks (2019) —, a partir de uma virada ecológica, anticolonial e perspectivista. Em EAMI, o olhar violento do opressor é contrariado pela constituição de uma imagética da recusa, pelos olhos que se negam não somente a olhar, mas a entregar o que estão vendo. O segredo. O mistério de sobrevivência dos Ayoreo Totobiegosode.        


Ladram os cães que a rebelião está apenas começando


Se os ovos abandonados na primeira cena de EAMI nunca chegam a vingar, vingam-se por eles os animais que convulsionam latidos, rastejos, revoadas, grunhidos e cantos insolentes disparados em comunhão. Os bichos aliados, porém, praticamente não aparecem em imagens: o descarte da figuração visual funciona em nome do privilégio de sua estridência sonora. Como se anunciassem uma rebelião, eles desmontam o silêncio onírico das paisagens naturais do Chaco, que desenham a tela em planos fixos, vastos, perturbados apenas pelo vento que toca a vegetação em ondas ora sutis, ora mais agitadas, mas sempre com uma cadência macia, por falta de outra palavra, que aplaina com sua suposta lentidão a ansiedade espectatorial. Se nessas horas sentimos o vento acarinhar as árvores, as águas e a própria terra, o que logo produz uma sensação de que a imagem também nos toca, sentimos simultaneamente a inquietação dos animais, seus movimentos de fuga, sua ferocidade diante da devastação. 


Em EAMI, os bichos, para além de constituírem a mitologia dos povos Ayoreo, ocupando uma posição liminar nas transmutações e metamorfoses entre humanos, não humanos e criaturas, possuem sua própria cosmopolítica (Fausto, 2020), uma autonomia de vozerios que se comunicam para trazer mensagens das fronteiras entre os mundos. Os seus, os de seus amigos humanos, e aquele dos invasores do território ancestral do Gran Chaco. Entre narrativas de pássaros, tartarugas, onças, répteis e todo um amplo bestiário singular àquelas margens, os cachorros figuram como corpos domesticados, aprisionados e, ainda assim, especiais para os colonos que os diferenciam dos demais animais. Apartados do domínio selvagem ao qual pertenciam, os cães participam do imaginário colonial como espécies companheiras (Haraway, 2021) que devem servir aos propósitos humanos de proteção e parceria. No entanto, no filme de Encina, os cachorros prisioneiros da patroa branca revoltam-se contra seus captores, os mesmos jagunços que sequestraram diversos indígenas. Os Ayoreo, em um paralelo com seus companheiros Canis lupus familiaris, devem passar por um processo de domesticação para perderem seus costumes tidos como bestiais para a civilização. Torná-los bons selvagens, os indígenas e os animais, equivalentes no domínio da opressão, mas desiguais no regime de servidão. Pois ainda que sob os olhos coloniais, cachorros e pessoas consideradas menos humanas, devam servir, ambos, aos propósitos de seus senhores, nesta sórdida hierarquia social a existência canina passa a ser privilegiada para que cumpra sua função primordial: proteger os muros erguidos entre eles, colonos, e nós, povos colonizados. 


Esse esquema, contudo, é desarranjado quando, junto aos outros bichos daquele território, os cachorros insurgem numa rebelião contra os homens que usurpam o solo nutrido pelos Ayoreo Totobiegosode. Aliados, os cães atacam os jagunços, juntando-se ao pássaro raivoso que invade os aposentos silenciosos da patroa numa declaração de indomabilidade dos seres da floresta. Para além desta improvável aliança multiespécies, o que insurge é um caldeirão de imagens ferais povoadas pelos rugidos e revoadas de animais que, em composição à resistência dos Ayoreo, dispensam a placidez do sonho de uma natureza dócil, apta a ser sacrificada, para afirmar que aquela é uma terra em disputa.


Referências bibliográficas


FAUSTO, Juliana. A cosmopolítica dos animais. São Paulo: N-1 edições. 2020.


HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. São Paulo: Bazar do Tempo. 2021.


HOOKS, bell. Olhares negros – raça e representação. Rio de Janeiro: Editora Elefante, 2019.


MARKS, Laura. The Skin of the Film – Intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses. Durham: Duke University Press. 2000.


MIRZOEFF, Nicholas.  “Visualizing the Anthropocene”. Public Culture 26(2). 2014.


MULVEY, Laura. “Prazer visual e o cinema narrativo”. In: A experiência do cinema. Org: XAVIER, Ismail. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2018.


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