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Mulheres que pegam a estrada: o protagonismo feminino no filme de estrada latino-americano dos anos 2000

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    Mariana Mól
  • há 5 dias
  • 10 min de leitura
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Por Mariana Mól | Ensaios


Quando se pensa em filmes de estrada, a imagem que comumente se apresenta é uma paisagem esvaziada de uma estrada, um veículo e a personagem viajante que vai empreender o trajeto e conduzir a narrativa do filme. Um emblema dessa iconografia é Sem destino (Easy rider – EUA, 1969), dirigido por Dennis Hopper, com o cenário desértico dos Estados Unidos, duas motocicletas e os protagonistas Billy e Wyatt, interpretados, respectivamente, pelo próprio Hopper e Peter Fonda. Também conhecida como  road movie,   essa modalidade dramática  desenvolve ação e os conflitos durante uma viagem ao longo de uma estrada, muitas vezes transformando internamente (e intensamente) as personagens. O gênero cinematográfico ganhou evidência nos Estados Unidos, no final dos anos 1960, com o cinema moderno produzido pelos autores da Nova Hollywood. Tratavam-se de filmes independentes, veículos de sensibilidades e de rebelião contracultural da época. Logo o gênero rompeu as fronteiras estadunidenses, sendo transformado e reinventado nas narrativas produzidas pelo mundo, e também pela América Latina, até os dias atuais. Por muito tempo, o road movie enfatizou o movimento de personagens homens; às mulheres restavam papéis secundários, algum tempo de tela e funções narrativas pouco complexas – a maioria como “escada” para os viajantes protagonistas durante suas trajetórias de transformação interna.


Em 1991, o diretor Ridley Scott lançou Thelma & Louise, outro sucesso mundial que se tornou representativo do gênero: em meio à paisagem do Grand Canyon, duas viajantes mulheres conduzem um conversível pela estrada. Interpretadas por Geena Davis e Susan Sarandon, Thelma e Louise são duas mulheres fortes, protagonistas que mobilizam a trama, mas que acabam pagando um alto preço pela escolha pela liberdade e emancipação. O final trágico das personagens foi pouco questionado no momento de lançamento do filme, perto da novidade de se ter duas wild women na tela. Sinais daqueles tempos.


Mas a proposta deste texto é investigar o protagonismo feminino nos filmes de estrada latino-americanos, no recorte de três longas-metragens realizados a partir dos anos 2000: Qué tan lejos (Equador, 2006), direção e produção de Tania Hermida e produzido por Mary Palacios e Gervasio Iglesias; As filhas do fogo (Las hijas del fuego, Argentina, 2018), direção e produção de Albertina Carri e produzido por Eugenia Campos Guevara; e Suçuarana (Brasil, 2024), dirigido por Clarissa Campolina e Sérgio Borges e produzido por Luana Melgaço. A ideia aqui é olhar para o gênero cinematográfico que, assim como todo o cinema, também se transformou. A partir das três obras, pretende-se apontar como o filme de estrada latino-americano contemporâneo ampliou horizontes, diversificou suas personagens e mirou em outros caminhos para o gênero, a partir das protagonistas mulheres, de outras representações femininas e de novos códigos de conduta e objetivos das viajantes narradas. Quem são Esperanza e Teresa (Qué tan lejos), Augustina, Violeta e Carmen (As filhas do fogo) e Dora (Suçuarana)? Quando é que elas pegam a estrada? Quais as motivações, os destinos, as experiências, os desfechos e as visualidades impressas nestas narrativas? 


A produção contemporânea na América Latina, fruto das mudanças sociais dos nossos tempos, apresenta um maior protagonismo feminino nas obras, na frente e por trás das câmeras. Há uma maior presença de mulheres como personagens principais dos filmes, assim como um maior número de diretoras e produtoras. À luz da teoria feminista do cinema, é necessário estabelecer um percurso histórico da presença da mulher no cinema e desconstruir os fundamentos que encaminham diferentes possibilidades de interpretação nos filmes. “Oferecer uma nova visão sobre a linguagem cinematográfica é uma forma de subverter as bases nas quais se sustenta historicamente o cinema” (Kamita, 2017, p. 1394). A questão da representação da mulher sempre foi um tema central para o feminismo, desde os primórdios do movimento feminista. No cinema, o gesto não pode ser diferente: discutir como somos apresentadas, quais papéis desempenhamos, qual  espaço ocupamos na narrativa, no roteiro e na cadeia produtiva é urgente.


Primeiro longa da diretora equatoriana Tania Hermida, Qué tan lejos conta a história de duas mulheres que viajam juntas de Quito a Cuenca: a espanhola Esperanza (Tania Martínez) e a equatoriana Teresa (Cecilia Vallejo). As duas se conhecem no ônibus: Esperanza viaja de férias e Teresa pretende impedir o casamento de seu namorado com outra. Duas mulheres com objetivos e personalidades distintas: a primeira é condescendente, prática e despolitizada; enquanto a segunda é cabeça-dura, idealista e culta. Desde o início da trama somos apresentadas às duas personagens a partir de suas diferenças: Esperanza se maravilha com a paisagem, Teresa ironiza os colonizadores; a espanhola não tem direção definida e deseja absorver tudo em volta, a equatoriana tem urgência, é ríspida e cheia de conceitos e preconceitos. 

 

Durante todo o trajeto que empreendem juntas, elas transitam de ônibus, de carona e a pé – o país está parado por uma greve geral –, passando por espaços urbanos, estradas rurais, trilhas em meio a plantações e praias. À medida que deixam os veículos e começam a andar por caminhos alternativos para chegar à Cuenca, a paisagem vai ficando mais esvaziada, como um espaço propenso à internalização das duas personagens. Na estrada, apesar dos embates, elas se tornam amigas e também passam a questionar seus sonhos e desejos iniciais. 


As duas protagonistas dividem o trajeto e o tempo de tela do filme. Com passados, perspectivas e objetivos completamente diferentes, a partir do momento em que caem na estrada – ou melhor, quando começam a andar –, elas se conhecem melhor e redefinem as escolhas que as colocaram no caminho inicialmente. Ao longo da viagem, a convivência entre elas e o encontro com as pessoas que aparecem no caminho vão enriquecendo a ótica e opinião de cada uma sobre suas verdades tão inabaláveis. A viagem se torna uma trajetória de aprendizagem, de como cada pessoa vê o mundo e de como a convivência com o outro (o diferente) pode modificar a própria vivência.


Qué tan lejos começa com Esperanza versus Teresa, mas ao final o encontro das duas resulta numa soma positiva. E esse encontro é potencializado pela viagem, pelo companheirismo e pela experiência empreendida juntas. O filme reforça um ideal feminista quando mostra que duas mulheres podem ser protagonistas e ter visões distintas de mundo e de si mesmas. Andrea Molfetta (2012) escreve que as duas mulheres são aspectos de uma mesma, representantes de uma cultura ao mesmo tempo local e estrangeira e, consequentemente, mestiça. “As duas juntas são como uma mandala, fragmentos complementários de uma grande personagem em situação existencial – a Mulher – tão feminina à trama quanto é o próprio nome do nosso continente, América Latina, mistura instável de colonizador e colonizado” (Molfetta, 2012, p. 140).


Em As filhas do fogo temos um grupo de mulheres viajando juntas, numa Kombi, pelas paisagens congeladas da Terra do Fogo, na Argentina, numa jornada poliamorosa do prazer lésbico. O longa da diretora argentina Albertina Carri se apresenta como um filme pornô, poético e coletivo, feito por mulheres e para mulheres (dentro e fora das telas). Antes mesmo de conhecermos as personagens da trama, a narração traz um manifesto:


Nós somos netas, bisnetas, filhas e irmãs daquelas que fizeram de sua arte, de seus corpos, de seu território e de sua paisagem tochas heréticas, que iluminaram um novo céu. Somos as filhas do fogo. O problema nunca é a representação dos corpos. O problema é como esses corpos se tornam território e paisagem diante da câmera (As filhas do fogo, 2018: 9’).


A trama começa com a nadadora Agustina (Mijal Katzowicz) recebendo sua namorada, a diretora Violeta (Carolina Alamino), que chega a Ushuaia de navio. No bar, ao serem chamadas de “sapatonas” por um homem, elas conhecem Carmen (Rocio Zuvíria) e juntas descem a porrada nos caras que as hostilizaram. As três fogem do lugar, se conhecem, transam e, no dia seguinte, para fugir da polícia, decidem sair da cidade. A viagem pelo interior começa com o objetivo de buscar uma amiga, visitar a mãe de Agustina e principalmente o de realizar o desejo de Violeta: fazer um filme pornô lésbico. É durante o trajeto que as três mulheres dividem intimidades, afeto e prazer. E, a cada parada, outras mulheres são integradas à viagem, à história que nós, espectadoras, estamos vendo e ao filme realizado por elas. No filme dentro do filme, vemos mulheres lésbicas, queers, trans, gordas, livres, numa construção ampliada de personagens viajantes. 


Como um filme de estrada pornô, a obra usa diálogos econômicos entre as personagens e abusa de primeiros planos dos corpos e da duração das cenas, seja de sexo entre duas, três ou todo o grupo viajante – que chega ao total de oito. O filme rompe com a estrutura tradicional dos três atos (apresentação de personagens, desenvolvimento da trama e resolução), ao colocar o desejo como fluxo da direção da viagem. O longa celebra uma perspectiva diversa da existência feminina e aposta no poder da imagem a partir desse grupo de mulheres e de um outro modo de representação dos corpos. Não estamos somente desacostumados a ver personagens mulheres gordas, trans, livres, nas telas; estamos desacostumadas ao protagonismo feminino na condução das cenas de sexo, de gozo, inclusive com outras mulheres. Carri é de certa forma didática ao focar nos movimentos dos corpos, no desejo nos rostos e, ainda, ao deixar a duração inteira de uma masturbação até o gozo das personagens – seja na abertura, no meio e ao final do filme. 


Mais que um filme pornográfico, a radicalidade da obra se instaura na forma como a câmera se aproxima e registra essas mulheres, não como objetos do olhar externo, mas como corpos desejantes e desejados. O filme afirma a existência, a beleza e a diversidade dessa comunidade de mulheres que viaja, se descobre, se diverte, se protege e goza junto. Aos personagens homens restam papéis e falas asquerosas, violentas e que refletem o mundo patriarcal e tradicional em que vivemos. Mas as filhas do fogo são vozes dissonantes, reagem com violência, agilidade e em conjunto para afastar as inconvenientes pedras do caminho e reinventar sua própria jornada.


No filme de estrada, as jornadas das personagens também se tornam psicológicas: as pessoas pegam a estrada e, ao mesmo tempo, são pegos por ela e seguem movidos por buscas pessoais de mudança e conflitos internos. Ao acompanharmos seus passos, constatamos que as crises de identidade são das protagonistas viajantes e que também refletem tensões de uma cultura, de um país. 


Esse gesto crítico e político está presente em Suçuarana, dirigido pelos brasileiros Clarissa Campolina e Sérgio Borges. Dora (Sinara Teles) é a protagonista deste filme que mostra as paisagens de Minas Gerais exauridas pela mineração e marcadas pelas várias formas de exploração das terras, do trabalho e, consequentemente, de seus habitantes. Ela é uma andarilha que segue a pé, pega ônibus, pede carona, em busca das terras de sua mãe, no Vale do Sussuarana – lugar que ninguém sabe onde fica. Dora é forte, arisca, não teme o duro trabalho da estrada, e é de poucas palavras. Ela não tem pouso, não tem filhos, e nada a prende. Dona de poucos pertences, tudo o que ela precisa para se virar cabe nas suas mochilas. Pelo trajeto, ela busca por trabalho, algum dinheiro e pouso breve. 


Na primeira parte do filme, acompanhamos o deslocamento da personagem pelas estradas. As cenas são mais rápidas, com planos abertos das paisagens, e a trilha é mais metálica e ruidosa, com o som de veículos no asfalto. No caminho, Dora conhece outras mulheres – que dividem com ela suas experiências de vida, outros homens – alguns se tornam parceiros, outros interesseiros, mas ela acaba se conectando  com um cachorro de rua – que dá o nome de Encrenca (Tony Stark). Assim como as oportunidades nessa primeira parte, os diálogos de Dora são escassos.


Após um incidente, Dora reencontra Encrenca, e eles adentram um túnel. Do outro lado, ela encontra uma comunidade, onde ela se estabelece por uma temporada, e lá consegue comida, casa, trabalho, amigos e uma relação de pertencimento. Agora os planos são em conjunto, mas também temos planos aproximados dos rostos, das ações de trabalho e de detalhes dos membros da comunidade. A trilha sonora se torna mais suave (ouvimos o vento e os pássaros) e os diálogos estão mais presentes para marcar uma harmonia e coletividade do lugar. Essa divisão narrativa do filme é acompanhada pela escolha estética de filmar cada parte de uma forma: o primeiro registro é em digital e o segundo em película, 16mm. No segundo momento, o registro acompanha uma aproximação ao realismo fantástico com a reaparição do cachorro (guia de Dora) e a presença desta comunidade depois do túnel. 


Mesmo em comunhão com a coletividade, Dora não se rende e logo decide voltar para a estrada. Mas, após toda caminhada, encontros e relações construídas, ela já não é mais a mesma mulher. E, assim, entendemos que a sua essência é o movimento e ela não negocia sua liberdade. Seu caminho segue aberto. Campolina e Borges constroem uma narrativa feminista ao afirmar que o lugar da mulher é onde ela quiser. Dora é uma personagem dona de si, autônoma, que faz da estrada seu lar. Partindo do princípio de que o pessoal também é político, Suçuarana não somente traz uma protagonista forte, mas também reconfigura espaços e papéis ocupados pelas outras personagens mulheres do filme: elas são donas de bar, cantoras da noite, líderes de comunidade, todas donas de seu próprio destino e independentes. 


Antes da parada final


Um projeto crítico de cinema feminista precisa tornar visível o que passa desapercebido, e que pode dar a entender como inexistente, e leva em conta não apenas a representação da mulher na tela, mas também sua participação na indústria cinematográfica. O sentido feminino nos filmes deve estar à frente e por trás das câmeras: na ação das personagens mulheres e nas escolhas e defesas das produtoras e diretoras que optam por departamentos liderados por mulheres, que decidem por temas insurgentes, histórias não convencionais e que constroem novas imagens da mulher, do feminino e do que se deseja chamar de cinema. 


Os três filmes, de diferentes formas e em territórios de viagem distintos, permitem um novo olhar para a participação das mulheres no gênero cinematográfico do filme de estrada. Cada um à sua maneira constrói uma representação feminina complexa, múltipla, diversa e arriscada. Esperanza, Teresa, Agustina, Carmen, Violeta e Dora destroem a ideia simplista e binária de que homens dominam a vida e o meio social e a elas resta somente o espaço doméstico, o cuidado familiar ou a maternidade. Desta forma, Hermida, Carri, Campolina e Borges implodem com premissas estabelecidas, tradicionais e patriarcais, da sociedade e do cinema, e dão outras dimensões e ampliam perspectivas para essas protagonistas mulheres que pegam as estradas.



Referências

 

KAMITA, Rosana Cássia. Relações de gênero no cinema: contestações e resistência. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 2, nº 3, 2017, pp. 1393-1404. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/48996


MOLFETTA, Andrea. A personagem na natureza: filmes latino-americanos da virada do século. In: BRANDÃO, Alessandra, JULIANO, Dilma, LIRA, Ramayana (Orgs.). Políticas dos cinemas latino-americanos contemporâneos: múltiplos olhares sobre cinematografia latino-americana atual. Palhoça: Ed. Unisul, 2012.


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