O Cinema é uma Rosa
- Izabela Silva
- 21 de jan.
- 9 min de leitura
Atualizado: 17 de fev.

Por Izabela Silva | Ensaios
O que é o cinema? O que é um filme? O que torna alguém cineasta? Perguntas como essas reverberam sem respostas definitivas. Para Chantal Akerman, “Cinema é cinema é cinema, uma rosa é uma rosa é uma rosa”, em eco às palavras de Gertrude Stein no poema Sacred Emily. No entanto, em 1968, uma brasileira autodeclarada não cineasta demonstrou, por meio de sua linguagem poética, que uma rosa é cinema e cinema é uma rosa, tornando-se uma das primeiras mulheres a dirigir uma obra cinematográfica no país.
Durante minha graduação em Cinema e Audiovisual, como parte da primeira turma que em 2014 reinaugurou o curso na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais , descobri o nome de Rosa Maria Antuña, que havia estudado na mesma instituição nos anos 1960. Naquele período, percebi que a história do cinema, tal como era ensinada, parecia ignorar a participação das mulheres. Nenhuma diretora foi mencionada ao longo das disciplinas e os livros de referência raramente abordavam suas contribuições. Essa ausência levantou questões sobre as condições do mercado audiovisual: as oportunidades para as mulheres eram reais? Outras cineastas estariam em atividade? Quantas tiveram suas histórias apagadas?
Iniciei, então, uma pesquisa que revelou que, embora em número reduzido, muitas mulheres desafiaram convenções e contribuíram de forma significativa para o cinema no Brasil e no mundo. Desde Cléo de Verberena, que dirigiu O Mistério do Dominó Preto em 1930, até Carla Camurati, que reacendeu o cinema nacional em 1995 com Carlota Joaquina, 72 mulheres lançaram longas-metragens em salas de cinema no Brasil.
Até 1960, somente seis mulheres haviam estreado filmes de longa-metragem em salas de cinema no Brasil. Mas foi a partir dessa década que houve um crescimento de mulheres em funções técnicas e na direção de curtas-metragens. Nesse contexto, Rosa Maria Antuña emergiu como precursora do cinema de vanguarda, sendo uma das primeiras mulheres a dirigir curtas de ficção em Minas Gerais.
Meu primeiro encontro com Rosa aconteceu no dia 15 de janeiro de 2018. Consegui seu contato por meio de sua filha, também chamada Rosa Antuña, bailarina reconhecida nacionalmente. Luciana Jordão (co-roteirista e produtora do filme Eu não sou cineasta), fez a ligação inicial e ficou impressionada com a sua receptividade e simpatia. No dia da visita, Rosa e seu marido, Nilseu Martins, nos receberam. Surpresa com a proposta da entrevista, Rosa expressou humildemente que não havia muito a dizer sobre si mesma.
A sala onde nos recebeu estava repleta de relógios antigos, uma coleção que parecia traduzir sua personalidade. Nascida em Belo Horizonte em 13 de julho de 1939, Rosa é canceriana, assim como sua mãe, sua filha e sua avó, todas chamadas Rosa. A tradição familiar de batizar ao menos uma mulher em cada geração com o nome Rosa se refletiu simbolicamente no título de seu primeiro filme. Filha do comerciante espanhol Geraldo Antuña Suarez e de Maria Etelvina Barreto Antuña, Rosa teve uma educação católica e frequentou colégios cristãos, embora afirme não ser uma pessoa muito religiosa.
Já formada como auxiliar de bibliotecária, Rosa trabalhava na biblioteca da Faculdade de Medicina da UFMG quando, aos 25 anos, ingressou na Escola Superior de Cinema (ESC), fundada pelo cineasta e padre Edeimar Massote em 1962, na Universidade Católica de Minas Gerais (atual PUC Minas). A escola foi criada com o objetivo de formar cineastas cristãos, mas as produções realizadas pelos alunos, ao longo do tempo, começaram a refletir inquietações sociais e estéticas que iam muito além desse propósito inicial. Era um momento em que o Cinema Novo ganhava reconhecimento internacional, sugerindo que fazer cinema no Brasil poderia ser um sonho possível, apesar da crescente repressão da ditadura militar (1964-1985). A aula inaugural do curso foi ministrada por Humberto Mauro, pioneiro do cinema em Minas Gerais e admirado por Massote.
Rosa conta que sempre gostou de cinema e viu no curso uma oportunidade de explorar algo novo. Inicialmente, convidou uma prima para se inscrever com ela no vestibular, mas a prima desistiu. Rosa continuou e encontrou no curso um ambiente estimulante, diferente do tradicionalismo da sociedade mineira, algo que influenciaria sua visão de mundo e, mais tarde, sua obra.
Durante o curso, os alunos assistiam a inúmeros filmes e participavam de debates, incentivados pelo movimento cineclubista da época. Padre Massote, admirador de cineastas como Bergman e Fellini, acreditava na realização de um cinema que carregasse uma mensagem social, algo que Rosa Maria Antuña descreveu como um zeitgeist do seu tempo: “Naquela época essa tal mensagem social andava dentro da gente”.
O primeiro contato de Rosa com a câmera foi como atriz no filme Morte Branca (1968), de José Américo Ribeiro. Ela interpretou uma prostituta e, para gravar a cena, precisou esconder de sua mãe uma saia curta e o batom vermelho. A cena, gravada na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, mostra Rosa descalçando os sapatos e descascando um ovo cozido em um gesto carregado de dissimulação, remetendo à performance de Helena Ignez em O Bandido da Luz Vermelha (1968, Rogério Sganzerla). O filme foi bem recebido no Festival JB/Mesbla e animou os alunos a enviarem mais produções ao evento.
A ousadia e a coragem que Antuña demonstrava em cena não condiziam apenas com a atividade de atriz. Incentivada pelo amigo José Américo Ribeiro, ela tomou a câmera na mão para concretizar a primeira ideia de filme que lhe veio à cabeça: Rosae Rosa. Antuña conta que a concebeu em um momento de insônia dentro de um ônibus em uma viagem que fez com as amigas para o Rio de Janeiro.
Sentimos sua mão tremer enquanto o filme passa na tela. Um plano aberto de um homem no meio do lixo. Em um plano posterior, fechado, este mesmo homem caminha pelas ruas largas do centro de Belo Horizonte. Em seguida, um primeiro plano, e sua silhueta em uma contraluz ao céu cinza da cidade. Ao todo, são 32 planos para narrar 5 minutos de roteiro, demonstrando uma maturidade técnica e intelectual da autora, que não queria fazer qualquer filme. Rosae Rosa retrata um conflito de classe, através do encontro de um mendigo que pede esmola a uma jovem rica. A moça não lhe oferece dinheiro, mas uma rosa. Ao receber a flor, o homem a engole e deixa para o espectador o seu recado: a fome, e não a poesia, vem em primeiro lugar. Curiosamente, o filme pode ser visto como uma autocrítica da autora, que coloca o seu próprio nome no título do filme em latim, que significa “Rosa para Rosa”. Uma indicação de que a poesia (a rosa) do seu próprio filme, não serve para ninguém, a não ser para ela mesma. Naquela época, o Brasil enfrentava uma das maiores crises de miséria de sua história e nesse sonho de fazer cinema, Antuña demonstra empatia política e social à questão.
Já o seu segundo filme, Solo (1969), foi uma obra ainda mais ousada. Gravado clandestinamente durante o período de repressão militar, o curta de apenas 90 segundos, mostra uma beata solitária que, em um ambiente carregado de religiosidade, se masturba com a imagem de Santo Antônio. Para Rosa, Solo era uma mensagem clara sobre a solidão feminina, uma história triste, filmada com um olhar feminino. A protagonista não se apresenta para a câmera de forma erótica, nem atende aos padrões de beleza da época. Padre Massote, ao ver o filme, afirmou que "só o Bergman havia filmado esse tipo de cena". Após sua única exibição no Festival JB/Mesbla em 1969, o filme gerou interpretações polêmicas que levaram Rosa a se autocensurar. Por mais de 50 anos, Solo permaneceu escondido em uma lata na sua cozinha, como um segredo cuidadosamente guardado, inclusive de sua própria filha.
Solo foi recuperado digitalmente no Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual da Universidade Federal do Fluminense (LUPA-UFF) sob a coordenação da restauradora Débora Butruce, em uma iniciativa ligada ao projeto do filme Eu Não Sou Cineasta*, que estou desenvolvendo. Apesar dos esforços para restaurar e preservar essa importante obra, Rosa permanece firme em sua decisão: Solo só poderá ser exibido publicamente após sua morte, uma posição que ela reiterou em várias conversas. No entanto, uma pequena exceção foi aberta em março de 2024, quando Rosa permitiu sua exibição pública pela primeira vez em anos no Festival Punto de Vista, em Pamplona, na Espanha, onde o filme foi recebido com honra, surpresa e admiração pela comunidade cinematográfica europeia.
Após Solo, Rosa abandonou o cinema, citando as dificuldades financeiras e a falta de apoio institucional em Minas Gerais. Se Rosa quisesse seguir fazendo cinema, ela teria que se mudar para o Rio de Janeiro, onde se concentrava a maioria das produções, ou para os Estados Unidos: “Mas eu não ia largar o meu emprego e minha segurança financeira, para correr atrás desse sonho. Para fazer cinema naquela época, eu iria gastar o meu dinheiro e não ganhar...”, relata. Apesar disso, trabalhou por um ano como secretária na ESC antes de seu fechamento em 1970, causado pela ditadura. Mais tarde, casou-se com Nilseu Martins, também estudante de cinema na ESC, em uma cerimônia proferida pelo próprio padre Massote. Seguiu a carreira de bibliotecária.
Sem grandes ambições artísticas, Rosa Maria Antuña leva a memória deste período como uma brincadeira da juventude. Ela fazia cinema porque achava divertido. Ela disse que nunca se considerou uma cineasta, e que nem mesmo se produzisse um longa-metragem hoje em dia adotaria essa designação.
Antuña não tinha conhecimento de que seu impulso e sua vontade de criação pessoal eram reflexos de uma verdadeira autoria cinematográfica, tendência que vinha crescendo no mundo todo naquela década. O cinema foi a linguagem que encontrou para se expressar e comunicar, mas ela não imaginava a amplitude do gesto político que estava desempenhando ao ser mulher e produzir, escrever, fotografar e dirigir os seus próprios filmes. “Não pensei que estava fazendo um filme para ser visto. Tudo foi feito de uma forma muito pessoal, o filme era para mim. Uma criação que pus pra fora em forma de filme, como escrever um conto ou uma poesia, no meu caso foi na forma de filme (...)”.
Deste panorama histórico, podemos destacar alguns fatores característicos que influenciaram o cinema de Rosa: 1) A vontade da realizadora de romper com os valores tradicionais da família mineira; 2) O incentivo da escola ao experimentalismo, às temáticas sociais e à liberdade de expressão dada por Padre Massote aos seus alunos; 3) Sua formação como cineasta completa, dotada de uma sólida base crítica e técnica, algo que contrastava com o contexto das demais realizadoras no Brasil até então.
Entre os motivos que podemos nos aproximar e que a levaram a deixar o cinema, destacam-se: 1) A falta de condições financeiras; 2) A posição geográfica de Belo Horizonte, que a distanciava do eixo das principais produções nacionais; 3) A ausência de apoio contínuo, já que seu círculo de amigos e a escola foram os principais motores para a realização de seus filmes; 4) A incompreensão e a falta de reconhecimento pelo seu trabalho criativo; e 5) Embora Rosa não tenha sofrido uma perseguição artística diretamente, é impossível ignorar a influência do contexto político do Brasil em 1969, marcado pelo AI-5 e pela repressão da ditadura militar, perigoso para artistas – um fator que pode ter alimentado a autocensura do seu filme Solo, mesmo que hoje em dia ela não o admita.
Cinquenta anos depois, quando me formei, fui tomada pelos mesmos questionamentos que assolaram Rosa Maria Antuña em 1969. Resgatar sua história revela para mim não apenas sua relevância, mas também como, apesar do tempo decorrido, as ansiedades e os medos das mulheres cineastas continuam semelhantes. Em 2017, quando me formei no curso de cinema, nosso país estava marcado por um golpe contra a presidente Dilma Rousseff, seguido pela eleição de Jair Bolsonaro e pelo sucateamento das instituições culturais. No entanto, ao contrário de Rosa, consegui encontrar pequenas rotas de fuga para seguir meu sonho de fazer cinema em condições mais dignas, mesmo que isso tenha me exigido deixar Belo Horizonte.
Hoje, no Brasil e em Minas Gerais, florescem novas possibilidades às mulheres no cinema, das quais inclusive se beneficia o projeto Sara y Rosa: editais de financiamento público, políticas de cotas, uma rede de festivais nacionais, cineclubes e o surgimento de novas escolas de cinema e espaços de formação crítica. Embora as mulheres ainda sejam minoria na direção cinematográfica e enfrentam altos custos emocionais e profissionais, essas conquistas representam avanços importantes. Por isso, trazer à luz a história de Rosa é tão essencial: seu legado nos lembra que cada passo dado hoje é fruto de lutas travadas ao longo de décadas e que, mesmo pequenas, essas mudanças carregam a esperança necessária para construirmos um futuro mais inclusivo.
Eu não sou cineasta é um documentário de criação em fase de desenvolvimento, dirigido por Izabela Silva, em coprodução entre pelas produtoras Abre Caminho Filmes (Brasil), DGT Filmes (Brasil) e Escarlata Estúdio (Espanha). O projeto conta com recursos da Lei Paulo Gustavo e do Edital BH Nas Telas, além de ser um dos filmes impulsionados pelo Laboratorio de Acompañamiento Editorial de Documentales de Creación da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. O filme narra a trajetória de descoberta e aproximação da diretora Izabela Silva com Rosa Maria Antuña, movida pela jornada de recuperar suas obras e as marcas do cinema que atravessaram a vida dessa "não-cineasta".
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Imagem: Still frame do filme "Eu não sou cineasta"
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