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Mulheres e Arquivos: Guardiães da memória e do tempo

  • Marisol Aguila Bettancourt
  • 13 de ago.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 14 de ago.

Detalhe do cartaz do filme El cielo esta rojo (2020), de Francina Carbonell
Detalhe do cartaz do filme El cielo esta rojo (2020), de Francina Carbonell

Por Marisol Aguila Bettancourt


Assim como as mulheres que cuidam das sementes para proteger o patrimônio cultural de suas comunidades, as documentaristas latino-americanas que incorporam uma perspectiva de gênero em sua visão artística estão trabalhando ativa e profundamente para recuperar seus próprios arquivos cinematográficos e os de outras pessoas, como se estivessem mergulhando nas profundezas da memória para preservar a cultura de nossa região.


Tornando-se guardiões do tempo, uma nova geração de jovens diretoras está se conectando com imagens do passado, interpretando-as no presente, como herdeiros de uma cadeia histórica de registros em busca de novos significados.


Elas recuperam imagens para tornar visíveis as memórias que a história oficial esqueceu, principalmente as de mulheres cujas experiências e testemunhos exigem um lugar na construção coletiva do mundo, tanto no âmbito da reprodução (privado) quanto da produção (público). Muitas delas resgatam arquivos e filmes caseiros, cruzando o pessoal com o político, como a segunda onda do feminismo nos anos 1970 historicamente nos ensinou: experiências pessoais e familiares influenciadas por eventos políticos ou estruturas de poder desiguais.


Outras guardiãs da memória mergulham em imagens descartadas, esquecidas ou judicializadas para usá-las para contar histórias de outras mulheres relegadas a posições subordinadas (como as privadas de liberdade), discriminadas diversas vezes por gênero, classe ou orientação sexual, em uma leitura interseccional das categorias de opressão inerentes à aliança perversa entre capitalismo e patriarcado.


Esta é uma geração de jovens mulheres que cresceu com maior acesso a dispositivos de gravação e câmeras domésticas que filmavam suas vidas. Hoje, elas têm a oportunidade de resgatar seus vídeos familiares para reconstruir sua própria história. Com isso, podem reviver uma época específica e desfazer os nós que bloqueiam sua linhagem familiar, como num exercício catártico de libertação e reordenação dos fluxos vitais de identidade.


No Chile, várias jovens cineastas assumiram a tarefa de extrair da obscuridade do tempo outros momentos e outras histórias, aquelas omitidas e silenciadas por discursos dominantes que não só prevaleceram por séculos, mas também têm a capacidade implacável e poderosa de se reproduzir e se enraizar nos costumes e práticas socioculturais aprisionados pelo poderoso sistema patriarcal.


História do meu nome (2019), da diretora chilena de ascendência mapuche Karin Cuyul (37 anos), é uma busca pela identidade pessoal e familiar por meio de arquivos, que, neste caso, não são os seus, mas de terceiros (pois não encontrou nenhum testemunho de sua infância em Antofagasta e Chiloé, perdido em um incêndio ou na clandestinidade de seus pais revolucionários). Com a coragem típica desta geração de mulheres que desenterram segredos do passado, Cuyul descobre uma história familiar de resistência à ditadura que desconhecia e consegue confrontar seus pais como um exercício de construção de sua própria identidade.


Em sua diversidade de estilos, temáticas e gêneros cinematográficos (embora predomine o documentário autobiográfico), várias diretoras chilenas se posicionam no que, a partir de uma perspectiva interseccional, poderíamos chamar de “cinemas femininos" (porque esses cinemas não podem ser categorizados em uma única perpsectiva e há múltiplos fatores sociais que os interseccionam), com uma perspectiva feminista que questiona a representação estereotipada das mulheres e visibiliza sua situação de desigualdade estrutural e violação de seus direitos, como grupos historicamente discriminados.


Em seu filme de estreia Malqueridas (2023), vencedor do prêmio de Melhor Filme na Semana da Crítica de Veneza, a diretora Tana Gilbert (33) subverte a ordem tradicional do registro audiovisual em que um diretor filma suas protagonistas; neste caso, são mulheres privadas de liberdade que tiveram que ser mães atrás das grades e que registraram sua situação de confinamento com seus filhos e filhas pequenos a partir de seus próprios celulares, evidenciando seu lugar de enunciação a partir de sua especificidade subalterna e marginalizada.


Elas não foram expostas à observação de outra pessoa que as filmava; em vez disso, elas mesmas definiram o que enquadrar a partir de sua própria e valiosa perspectiva, permitindo ao espectador vivenciar em primeira mão um cinema do real, emocional e sensível, imbuído de uma verdade profunda. Um aspecto particularmente convincente da perspectiva das mulheres privadas de liberdade é que a experiência vivida, a partir da qual elas reconstroem suas vivências e memórias e elaboram a narrativa coletiva, pertence a elas, não a qualquer um que as observe de fora de seu confinamento.


Em Malqueridas o autorregistro é explorado e estabelecido como uma reivindicação política: registrar com o próprio olhar e ser protagonista das próprias histórias, na crença da diretora de que, quando narramos o mundo, nos apropriamos dele. Neste caso, as imagens de mulheres privadas de liberdade vivendo com seus filhos pequenos atrás das grades são proibidas e clandestinas, por isso a equipe teve o cuidado de utilizá-las somente após suas donas já terem saído da prisão para evitar represálias. (Atualmente, uma lei proíbe o uso de celulares nas prisões chilenas, o que, se estivesse em vigor quando o filme foi feito, não teria permitido reunir arquivos filmados atrás das grades.)


São arquivos capturados na intimidade do cotidiano, quando as mulheres cozinham, dão banho nos filhos, comemoram seus aniversários com o que têm, ou criam laços com outras companheiras de cela que enfrentam juntas a dor da prisão. O confinamento é sentido ainda mais intensamente quando as portas das celas se fecham todas as noites; as crianças percebem que estão prestes a serem trancadas e clamam ao "cabo" (drasticamente, uma das primeiras palavras que aprendem ao adquirir a linguagem) para não fazê-lo. São meninos e meninas que, devido às circunstâncias de vida de suas mães, também são presos e condenados ao confinamento até os dois anos de idade, quando vem a separação brutal de suas mães. Alguns serão cuidados por seus parentes (se houver), outros serão institucionalizados e outros ainda desaparecerão para sempre da vida de seus pais.


A conexão entre a equipe de filmagem e diversas mães encarceradas que cumprem penas triplas (penitenciária, social e pessoal) surgiu de oficinas que lhes permitiram aprofundar sua realidade e compartilhar suas imagens gravadas em celulares. Foi o caso de Karina Sánchez, uma detenta cuja narração representa uma única personagem do documentário que reúne os depoimentos de vinte mulheres sobre suas experiências como mães na prisão, experiências dolorosamente marcadas por gênero. Ela acabou se juntando à equipe como co-roteirista, assim como Ana Cabrera — outra mulher encarcerada — se tornou produtora das imagens recuperadas das redes sociais e atuou como elo com mulheres que haviam recuperado sua liberdade.


Considerando os papéis de gênero patriarcais que persistem em nossa sociedade, a ausência das mulheres da vida familiar durante a prisão tem um impacto diferenciado sobre homens e mulheres, que é mais profundo, e seus filhos correm maior risco de se envolverem na criminalidade.. Assim, surgiram algumas propostas legislativas para a aplicação de penas não privativas de liberdade para mulheres que cometem crimes (principalmente tráfico de drogas) e têm filhos.


Dramaticamente, mulheres encarceradas muitas vezes não recebem visitas, algumas são algemadas durante o parto sob a suposição de que são usuárias de drogas, criam seus filhos em confinamento, enfrentam o momento traumático da separação, não sabem se seus filhos estão indo à escola ou comendo o suficiente quando estão fora. Muitas delas são levadas para instituições e não conseguem reconstruir o vínculo depois que são libertadas da prisão.


No caso de  Visão noturna (2019), primeiro longa  da diretora Carolina Moscoso (39), aborda-se as mulheres vítimas de violência sexual, a impunidade da justiça patriarcal e o estupro como espetáculo no cinema tradicional sob a perspectiva masculina, a partir da própria experiência de agressão sofrida pela diretora em uma praia anos antes.


Confrontando o silêncio histórico das mulheres diante da agressão sexual, Carolina propõe novas linguagens audiovisuais a partir de arquivos "incorretos" e "sujos" gravados em seu celular desde os quinze anos de idade (que somavam entre 150 e 200 horas de filmagem, condensadas em dois meses de exibição, durante os quais viu sua vida passar em imagens), sem imaginar que se tornaria cineasta. Ao rever essas imagens, percebeu que eram carregadas de emoção, muito mais do que imagens perfeitas, pois não estavam sujeitas à análise de técnicas dogmáticas ou à correção ou incorreção do cânone cinematográfico.


Nos primeiros cinco minutos de Visão noturna, a diretora solta uma bomba ao deixar claro que o filme será sobre violência sexual, e o faz explorando a luz, com imagens superexpostas, estouradas, com um brilho ofuscante, sem nitidez, na penumbra, até mesmo na escuridão total ou usando o “night shot”, que dá nome ao filme.


Os textos sobrepostos na tela e a narração, juntamente com imagens provocativas e obscenas, libertos do modelo audiovisual imposto, são uma forma de narrar o silêncio histórico que as mulheres sofreram diante do crime de estupro, transformando-o em uma jornada de dor que se transmuta em um uivo libertador.


Vencedor da Competição Internacional do Festival de Cinema de Marselha em 2019, o documentário se encaixa perfeitamente no cinema feminista, tanto na forma, por sua abordagem experimental à iluminação e à encenação suja e incorreta, quanto no discurso que rompe com estereótipos de gênero do que se espera que uma mulher vítima de abuso sexual.


Por meio de uma ruptura formal e discursiva, o filme chileno mais feminista dos últimos tempos alcança uma experiência emancipatória da estrutura masculina da enunciação, transformando a posição de uma mulher abusada sexualmente em um sujeito político que resiste à categorização da justiça, a partir de sua própria experiência de diferentes tipos de violência (sexual, institucional).


O tratamento de arquivos assume uma dinâmica diferente para cineastas que incorporam as "lentes violetas" da perspectiva de gênero e da análise interseccional (fatores sociais como gênero, classe social, orientação sexual, raça e etnia interagem para gerar múltiplas discriminações), não apenas em relação a filmes de família, autogravações ou imagens que não se qualificam como limpas e organizadas; também em relação a traumas coletivos, para os quais o cinema se torna um antídoto à impunidade, pelo menos em termos simbólicos.


No caso do documentário O céu está vermelho (2020), a jovem diretora chilena Francina Carbonell (32) reinterpreta imagens de arquivos judiciais para o caso da morte de 81 pessoas privadas de liberdade devido ao incêndio na Penitenciária de San Miguel em 2010, que revelou as persistentes condições de superlotação e superpopulação nas prisões chilenas, e os discursos classistas e aporofóbicos de uma parte significativa da opinião pública.


Tão dolorosas, quanto necessárias são as imagens de arquivo às quais Francina Carbonell teve acesso (supostamente públicas), após insistir durante dois anos para ver o processo judicial do caso das pessoas que morreram queimadas. O documentário devolve alguma reparação simbólica às suas famílias que continuam clamando por justiça, num processo que culminou na impunidade.


O que começou como uma tese na Universidade do Chile, sob a direção de Francina e sua equipe, tornou-se um documento com conotações históricas, premiado em Guadalajara, FicValdivia, Fidocs, que, onze anos depois da tragédia, mergulhou nos erros e fissuras do sistema penal que os arquivos revelaram, mais pelo que mostraram do que pelo que ocultaram: o tratamento desumanizador de pessoas que, ao cumprirem sua pena, deveriam ser privadas apenas de sua liberdade de ir e vir, e não de seus outros direitos humanos.


Uma cena particularmente violenta, devido ao seu alto significado simbólico, é aquela em que a câmera de segurança deliberadamente aponta e dá zoom no chão do pátio da prisão durante o incêndio, em vez de focar na torre em chamas. A apatia e a indiferença dos policiais são avassaladoras, como se os prisioneiros tivessem menos direitos do que todos os outros simplesmente por serem humanos.


Arquivos judiciais, imagens de câmeras de segurança, vídeos de laudos periciais (nos quais os internos dificilmente podiam prestar depoimento livremente, por causa do risco de represálias), vídeos e fotos de celulares dos internos e de seus familiares, e até mesmo de vizinhos que acionaram os bombeiros durante o ocorrido, compõem a política de imagens de O céu está vermelho. As representações dos mortos foram deliberadamente excluídas.


A abordagem inicial às famílias das vítimas, por meio da organização social 81 Reasons, é uma das características do processo de produção do filme, que o inscreve de uma maneira particular numa tendência, adotada por muitas cineastas que abordam temas complexos, de evitar a revitimização das famílias. As diretoras demonstram uma sensibilidade de gênero particularmente cuidadosa em relação à dor alheia.


Seja trabalhando com filmes de família, arquivos perdidos ao longo da história, imagens descartadas por outros ou não valorizadas por não atenderem aos padrões técnicos, a maioria das pessoas que empreenderam um exercício de resgate no cinema latino-americano nos últimos tempos são, coincidentemente, diretoras, que encontram na recuperação de arquivos uma forma de salvaguardar sua história familiar, comunitária ou micropolítica, atuando como guardiãs do tempo e da memória por meio do cinema documentário.


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