Montar o que não se pode organizar: desejo, acaso e ficção por um cinema lésbico-feminista
- Larissa Muniz
- 6 de jun.
- 10 min de leitura
Atualizado: 7 de jun.

Por Larissa Muniz | Metacrítica
Tentei escrever esse texto algumas vezes. Mas o movimento de resumir, consolidar e concluir algumas ideias sobre o cinema feminista sempre me parece contrário à própria prática desse cinema – que é múltiplo, fragmentário e em constante revisão de si mesmo. É uma tarefa necessária, no entanto, se queremos construir pontes entre teoria e realização, investigação e criação. Nos parágrafos que seguem, compartilho algumas notas sobre o percurso de um projeto de mestrado que resultou em um curta-metragem montado a partir de narrativas ficcionais dirigidas por mulheres entre as décadas de 1970 e 1980, intitulado Safo, a doce-amarga (2025).
Muito pode acontecer entre a ideia de um filme e a mesa de montagem; ou o rascunho de um ensaio e sua redação definitiva. A espera pela concretização dessa coisa tão abstrata que é dar forma a qualquer coisa no mundo é angustiante, não raro paralisante. Meu corpo muitas vezes resiste à tarefa: como se o próprio ato de delimitar um tema, escolher seus recortes e seguir um certo plano estruturante já ferisse uma história das mulheres cujos termos não compreendo completamente. Mas como escreve Gloria Anzaldúa em Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo (2019), na escrita (e montagem, eu adicionaria) “coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo.” Escrevo porque desejo. Escrevo para reescrever o que foi apagado. Escrevo para me aproximar de mim e de outras/es. Talvez, então, seja preciso abandonar a ansiedade pelo destino final e reconhecer que a travessia é, ela mesma, o gesto mais feminista do processo.
Alguns princípios norteiam este ensaio: ficção também é arquivo; feminismo são vários feminismos – no cinema, um movimento que é essencialmente sobre rever, reconsiderar e reescrever as narrativas mestras da nossa cultura; montagem é pensamento; o desejo desorganiza o corpo e o status quo de uma sociedade patriarcal e heteronormativa; desejo também é método.
“O que quem ama quer do tempo?”
Anne Carson nos pergunta isso em seu ensaio Eros, o doce-amargo (2022). Eu acrescentaria: o que quem pesquisa, escreve e monta quer do tempo? A partir de uma releitura poética dos diálogos platônicos sobre o amor, Carson sugere que um amante nocivo deseja parar o tempo, controlá-lo de forma que seu objeto de desejo permaneça inalterado, fixo, incapaz de escapar da paixão que o aprisiona. Em outras palavras, esse amante quer congelar quem ama no tempo. Afinal, aquilo que não muda é facilmente enquadrado, manipulado e fixado em uma imagem do passado – a ameaça da transformação desaparece.
Para a autora, esse cenário de controle é justamente o oposto do erótico. Ela descreve o desejo não como uma carência a ser preenchida, mas uma força que se move no espaço do entre – entre o sujeito que deseja e o sujeito desejado, o presente e o futuro, o saber e o não saber. Eros é o nome desse intervalo: uma carga elétrica que circula nas diferenças. O desejo, nesse sentido, está sempre em atraso, sempre em suspenso – e é justamente essa interrupção que o torna produtivo, inclusive no campo do conhecimento. Desejar conhecer, para Carson, é permanecer no desconforto da dúvida, é habitar a distância entre a pergunta e a resposta, sem antecipar uma conclusão. O erótico, portanto, não está no domínio sobre o outro ou sobre o saber, mas na abertura à alteridade, ao risco, à metamorfose. Conhecer, assim como amar, exige suportar o movimento e a incerteza – aquilo que escapa à fixação.
Como eu posso existir sem uma história?
Investigar o feminismo a partir do cinema é uma tarefa que, já de saída, parece fadada ao fracasso. Tal como o amante de Carson, o primeiro impulso é o de tentar controlar – ordenar dados, construir uma cronologia, eleger pioneirismos, resumir décadas em algumas categorias. Mas esse gesto totalizante logo se mostra insuficiente diante de um passado constituído por silêncios, lacunas, contradições e apagamentos. É justamente nesse entrecruzamento que uma história das mulheres começa a ser escrita, defende Teresa de Lauretis (1993).
Segundo a autora, as mulheres, historicamente excluídas da esfera pública e da linguagem autorizada pelos homens (a universidade, a ciência, a política), criaram estratégias de existência coletiva a partir de espaços de confinamento, como o convento e o quarto. O silêncio e o isolamento desses ambientes privados foi o que as forçou a criar modos alternativos de expressão, para serem ouvidas, lidas e incluídas na história oficial. De Lauretis recupera o gesto discursivo e ficcional de Virginia Woolf em Um teto todo seu, no qual a escritora cria um espaço comum de endereçamento às leitoras, para distinguir “as mulheres” – sujeitas sociais, situadas historicamente – da “Mulher”, um mito genérico e abstrato. Só é possível construir uma história feminista num entre-lugar (sempre em processo), atravessado pela prática, contradição e multiplicidade.
Uma história das mulheres única, portanto, não existe. Enquanto EUA e Europa viviam uma revolução sexual na segunda onda feminista, por exemplo, a América Latina era atravessada por diferentes regimes ditatoriais – países como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai enfrentavam governos autoritários que, além de censurar o pensamento político e artístico, reforçavam papéis normativos de gênero e reprimiam qualquer dissidência sexual. Nesse cenário, a produção cultural de mulheres – especialmente lésbicas, negras, indígenas – muitas vezes não encontrava lugar nos espaços de circulação oficiais. Como pensar, então, uma história feminista do cinema latino-americano se suas imagens foram dispersas, silenciadas, censuradas ou simplesmente ignoradas?
Talvez a resposta não esteja em tentar traçar uma linha contínua, mas em recorrer à montagem (tanto no sentido cinematográfico quanto como gesto de colagem, escavação e pensamento) como possibilidade historiográfica. Como propõe Barbara Hammer ao escrever sobre Nitrate Kisses (1992) – filme de arquivos que faz uma espécie de arqueologia lésbica –, buscar uma história de representação lésbica (e feminista) não é sobre encontrar uma origem, mas sim sobre escavar vestígios, sobrepor camadas, fabular ausências. Montar é reinscrever: dar corpo ao que foi negado, tornar visível o que jamais chegou a aparecer plenamente nas imagens.
O filme que nunca existiu
A montagem de arquivos precisa criar, então, as condições de visibilidade e de audibilidade para algo que foi deliberadamente esquecido, ignorado. A estética de montagem pressupõe, assim, uma tática (embate com a matéria) e uma estratégia (ponto de vista). As forças em jogo na arqueologia da história, como bem disse Foucault (1971, p.161), “não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial”, mas obedecem ao “acaso da luta”.
– Anita Leandro (2015)
Ao escrever sobre arquivos da ditadura, a cineasta Anita Leandro (2015) argumenta sobre como o cinema pode recuperar uma documentação dispersa e construir uma continuidade narrativa, ainda que mínima e irregular, de forma a restituir esses materiais – inicialmente abandonados à própria sorte – à história oficial. Ainda que instável, esse ato de propor uma organização dos arquivos, com ligações e associações possíveis, é importante para a transmissão e invenção de uma memória que não pode se completar totalmente. Uma montagem de arquivos, portanto, tem esse potencial de pegar os resíduos de documentos históricos e restaurar parte de suas ruínas, percorrendo o arquivo numa determinada direção que pode constituir novas narrativas.
No entanto, quando o material bruto do filme é um infinito acervo que, na era digital, pode ser acessado na palma das mãos – facilmente manipulado nos aplicativos de edição –, como lidar com esse material? Afinal, a história deste tipo de arquivo não deixa de ter suas lacunas pelo fácil acesso ou tamanho do acervo. Como decidir o que entra ou sai? Quais critérios usar? A cada tentativa de organizar um corpus, eu sentia que esmagava a multiplicidade dos gestos feministas, forçando-os a caber dentro de uma narrativa limitada – um curta-metragem que, desde o início, parecia incapaz de abarcar tantas diferenças. As obras resistiam à minha vontade de controle. E, aos poucos, a ideia de um filme foi ficando suspensa, paralisada, enquanto eu testava caminhos para contar essa história – esquecendo, em muitos momentos, o próprio material que havia me movido a começar.
Por que incluir Ana Carolina, Lizzie Borden e Ulrike Ottinger, e não Maria Luisa Bemberg ou Vera Chytilová? Uma das respostas é pragmática: em algum momento, era preciso terminar. Para montar uma lista viável dentro do tempo e dos limites do projeto, tive que fazer escolhas. Algumas obras me acompanham há anos, desde o início dos meus estudos em cinema feito por mulheres. São imagens afetivas, que por muito tempo significaram para mim ruptura, desejo e liberdade. E também imagens muito comentadas nas teorias feministas de cinema. Outras descobri no processo – especialmente na busca por imagens lésbicas, por mulheres amando mulheres, de forma explícita ou insinuada. Imagens que eu procurava há muito tempo e que, até então, ainda não tinham cruzado meu caminho no cinema.
Esse processo teve algo do acaso da pesquisa e do encontro. Em outras circunstâncias, com outras referências, minha seleção poderia ter sido completamente diferente. É uma espécie de curadoria – parcial, situada, um tanto metódica, um tanto arbitrária – guiada por interesses, afetos e recortes que se impuseram no tempo presente da montagem. O acaso tem uma força especial que contraria “uma intenção primordial”, como coloca Foucault, se baseando nos acidentes, desvios, deslocamentos e lutas de poder dos fenômenos que produzem discursos e saberes.
O filme que existe, um ensaio lésbico-feminista
Voltar aos filmes. Foi quando fiz o óbvio – algo que esquecemos com frequência nas pesquisas sobre imagem – que a montagem começou a acontecer: abandonei provisoriamente toda a bagagem teórica para aplicá-la às narrativas e fiz o movimento contrário de mergulhar nas imagens e tirar delas seus gestos, composições e pulsões. Encontrei algumas repetições – o espelho que fraciona o corpo; um abrir e fechar de portas desesperado; um olhar de relance; um gesto de iniciar o flerte entre mulheres; um movimento coletivo de andar, correr e brigar na rua; o ato de aproximação e afastamento contínuo dos corpos.
Fernanda, em Amor maldito (Adélia Sampaio, 1984), vomita dentro de uma cela, enquanto é julgada pelo suposto assassinato de sua ex-amante, ex-mulher. A protagonista de Feminino plural (Vera de Figueiredo, 1976) vomita sangue na lente depois de correr pela cidade enquanto escuta uma voz narrar as expectativas sobre o papel feminino na sociedade – casar, ser mãe e esposa submissa. Jeanne, mãe e prostituta, encara, com as mãos ensanguentadas, o vazio de sua sala de estar depois de matar um de seus clientes (Jeanne Dielman, Chantal Akerman, 1975). Felicidade, mãe e esposa em fuga, presa em um quarto por sua própria filha, vê com terror uma avalanche de terra despencar da janela, tomando quase todo o cômodo (Mar de rosas, Ana Carolina, 1977). Uma freira negra em dúvida sobre sua vocação tira suas vestes devagar para a câmera (Diary of a black nun, Julie Dash, 1977). Uma freira sapatão é despida por uma amante (Damned if you don’t, Su Friedrich, 1987).
Eu poderia continuar uma lista infinita de gestos repetidos ou que, de uma maneira quase premonitória, são rimas narrativas ou visuais de personagens e tramas completamente distintas. Assumir o prazer de montar essas imagens – vê-las juntas, em tensão ou consonância – foi o que me permitiu concluir o ensaio. Safo, a doce-amarga não é o filme que planejei, mas o que nasceu do acaso e do desejo. Safo, a poeta da Grécia Antiga, tornou-se símbolo do amor entre mulheres, com seu nome ligado diretamente à origem do termo “lésbica” – referência à ilha de Lesbos, onde viveu. Supõe-se que tenha fundado uma escola para jovens mulheres e que seus poemas, escritos na primeira pessoa do feminino e marcados pelo erotismo, alimentaram especulações sobre sua homossexualidade. No entanto, o que se sabe de sua vida e obra é fragmentário, transmitido principalmente por outros/as poetas da época. É esse lugar simbólico do silêncio e incompletude em torno de Safo que me interessa aqui – ela é uma ficção baseada em especulações que podem ser reais; uma figura aberta à reinvenção, que desafia categorias fixas sobre gênero e sexualidade e escapa a qualquer tentativa de captura definitiva.
Por uma montagem que abre mão do controle
A montagem é quando você bota a bola no chão e começa um jogo de novo, junto a todo o trabalho que veio anteriormente. É o instante em que você tem que olhar tudo com os olhos mais lavados possível, para poder enxergar e atravessar a imagem, até que chegue a um sentimento, a um significado. – Cristina Amaral (2023)
Montar, no sentido mais simples, é juntar partes para formar um todo. No cinema, montar é inserir um plano depois do outro. Associar imagens em uma linha do tempo, a princípio, horizontal, para criar uma sequência única que, numa tela ou projeção, será exposta de forma linear. Mas a montagem é mais do que técnica: é forma de pensamento, é um modo de organizar mundos. Não por acaso, os soviéticos – Vertov, Eisenstein, Kulechov, Elizaveta Svilova – pensavam o cinema como a criação de uma nova realidade, para além de uma mera reprodução do real.
Dziga Vertov falava em “intervalos”: o que importa não é a ilusão de continuidade, mas o espaço entre os planos. É ali que o sentido emerge – na tensão, na fricção, no que não se encaixa. Nessa concepção, os planos de um filme trabalham pela tensão e pelo choque, atraídos e repelidos pelos diferentes impulsos visuais captados pela câmera – e não para preencher o “começo, meio e fim” de uma narrativa linear.
Se não é possível organizar as inúmeras representações das mulheres e do feminismo numa única montagem, optamos pelo intervalo como possibilidade narrativa – com base no desejo pelas imagens e no entendimento de que ele informa sobre uma carência ou uma potência da história do cinema. A partir de alguns impulsos, desenhar um método – que abraça o acaso como parte fundamental do processo. Talvez assim seja possível fazer da montagem uma atividade erótica, no sentido de Anne Carson, que já exploramos aqui, baseada nas diferenças e nas fronteiras necessárias entre dois corpos, dois objetos, duas perguntas. Assumir o risco de construir com o que escapa, com o que falta, com o que arde.
Talvez não se trate, afinal, de nomear esse cinema de mulheres e queer com segurança, mas de permanecer em contato com as suas interrupções, suas falhas e seus excessos. Se a montagem é, como Cristina Amaral sugere, o instante em que “se olha tudo com os olhos mais lavados possível”, então é também o momento em que nos permitimos desejar com lucidez – não para dominar as imagens, mas para escutá-las. Fazer e pensar cinema a partir da recusa de uma estabilidade e na insistência pela criação de mundos possíveis, múltiplos e inacabados. Nessa grande ficção onde imagens infinitas aparecem e desaparecem em intervalos – imagens que nos movem e nos atravessam, e que talvez nunca possamos fixar –, um gesto permanece: o de montar, apesar de tudo.
REFERÊNCIAS
EDUARDO, Renan; ROCHA, Lorenna. Abrir mão do controle, atravessar a imagem: uma conversa com Cristina Amaral. Camarescura - estudos de cinema e audiovisual | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Disponível em: https://camarescura.com/2023/07/01/cristina-amaral-entrevista-montagem-lorenna-rocha/
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo. In: História das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: MASP, 2019.
CARSON, Anne. Eros: o Doce-Amargo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
DE LAURETIS, Teresa. Feminist genealogies: A Personal Itinerary. Women’s Studies Int. Forum, Vol. 16, No. 4, 1993. pp. 393-403.
DE LAURETIS, Teresa. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.
HAMMER, Barbara. HAMMER! Making Movies Out of Sex and Life. New York: The Feminist Press at CUNY, 2010.
LEANDRO, Anita. Montagem e história: uma arqueologia das imagens da repressão. In: Sobrevivência das imagens. Org: Alessandra Soares Brandão e Ramayana Lira de Sousa. Campinas, SP: Papirus, 2015. (Série de Estudos Socine)
Comments