O cinema do futuro ou ensaiar o cinema sob a extrema direita
- Azul Aizenberg
- 31 de mai.
- 11 min de leitura

“A rebelião consiste em olhar para uma rosa até que seus olhos se transformem em pó.”
Alejandra Pizarnik
Quando fui convidada a escrever este texto, a extrema-direita estava no poder na Argentina há pouco mais de um ano. Ao longo de doze meses, minhas condições de vida e as de toda a sociedade foram radicalmente transformadas. Embora na Argentina as crises sejam um costume cíclico terrível, do qual não escapa nenhuma cor política, o tempo entre as eleições e a posse presidencial foi um momento de luto, e o que veio depois foi uma espécie de luto coletivo que ainda continua. Mas não há tristeza política sem raiva: enquanto víamos nossos amigos sendo demitidos, enquanto os preços aumentavam no supermercado, enquanto a violência racial, classista, machista crescia nas ruas, enquanto nos perguntávamos o que fazer diante de tal onda, batíamos panelas freneticamente, nos reuníamos em assembleias, marchávamos, nos movíamos em estado de interrogação: o que fazemos?
O que estávamos prestes a testemunhar foi anunciado com grande alarde, sem metáforas ou meias medidas: sob a bandeira do Avanço da Liberdade, a promessa de campanha do novo governo era varrer tudo que cheirasse a "comunismo". Ainda que — infelizmente — nada parecido com o comunismo tenha governado a Argentina, e esse termo, abalado pela história, pareça ter perdido suas raízes revolucionárias. A crueldade da mídia e a violência explícita deste governo em relação à administração anterior atingiu diretamente nossas condições de vida: por meio de DNUs (decretos de necessidade e urgência), os primeiros meses do novo mandato agravaram a crise habitacional e começaram os cortes em todas as áreas estaduais de saúde, educação e cultura. O que conhecemos como classe média, uma ficção da classe trabalhadora argentina promovida pela ascensão social de meados do século XX, começou a se desgastar, aumentando o abismo entre ricos e pobres. Para muitos de nós, a vida cotidiana se tornou uma série interminável de acrobacias profissionais, técnicas e emocionais para sustentar direitos básicos que hoje parecem luxos: morar sozinho ou com pessoas escolhidas em um lugar onde você não será despejado todo ano, comprar café, descansar aos domingos, tentar sustentar uma prática ou ofício que não paga aluguel, mas alimenta o espírito. Um esforço individual que tentamos exorcizar coletivamente por meio de networking com outras pessoas ou participando de manifestações, assembleias e coletivos onde podemos compartilhar nossas circunstâncias e ativar nossa imaginação para transformá-las. Esse é o nível atual das condições materiais para boa parte de nós que atuamos no mundo cinematográfico nesse território. No meu caso, através da minha plataforma autogerida ver y poder multipliquei as iniciativas virtuais, recebendo um número cada vez maior de estrangeiros ou emigrantes argentinos que são os que podem pagar uma oficina de cinema ou uma sessão de tutoria, combinando esse trabalho de gestão e docência com outras instâncias, como a própria redação deste texto.
Entre o primeiro verão e o outono do governo de extrema direita, o ataque à cultura foi sistemático. O porta-voz presidencial realizava coletivas de imprensa semanais nas quais citava os títulos dos filmes que recebiam apoio estatal, os nomes e sobrenomes dos cineastas, para se referir ao número de espectadores que tinham nos cinemas locais, mentindo sobre os números, distorcendo informações e descontextualizando os filmes, como se fossem todos produtos de marcas diferentes na mesma prateleira, em vez de experiências únicas que merecem ser consideradas, cada uma, em termos de seu potencial de exibição. Enquanto ouvíamos essas declarações, a liderança do Ministério do Capital Humano (substituindo o Ministério da Cultura) realizava uma onda de demissões no INCAA, eliminando escritórios e reduzindo áreas na sede federal da ENERC (escola nacional de cinema) em todo o país. Tudo isso acontecia enquanto a última edição do BAFICI decorria normalmente, com exceção de alguns discursos críticos e algumas intervenções na entrada do Teatro San Martín. “Coquetel para hoje, fome para amanhã”.
Depois disso, por um tempo, apenas filmes e séries de tanques estrangeiros foram produzidos. Mas hoje, nem isso. O país ficou muito caro, e nossos países vizinhos ainda podem oferecer mão de obra mais barata. É evidente que a crise é uma oportunidade para a obediência financeira, levando técnicos — a pequena parcela que ainda trabalha — a jornadas intermináveis, muitas vezes com horas extras não remuneradas, e outras produções menores a negociar salários abaixo do mínimo estabelecido pelo Sindicato dos Trabalhadores do Audiovisual (SICA). Essa situação certamente tirou muitas pessoas do campo audiovisual, obrigando-as a trabalhar em outras áreas e até mesmo a migrar. O mundo cinematográfico argentino não foi um mar de rosas sob os governos anteriores, mas havia uma base de condições materiais, conquistada por meio da luta de classes e do movimento feminista, que começou a desaparecer sob nossos pés.
Naqueles primeiros meses, ouvi um cenógrafo dizer que no setor de arte eles já estavam organizados, distribuindo sacolas de comida entre si. Ouvi também um trabalhador dizer, durante uma assembleia geral de todos os setores culturais, que o que eles estão atacando não é o "cinema argentino", mas um certo tipo de cinema. Esses documentários, artesanais, militantes, cinematográficos como modo de construção e transformação de comunidades, cada um à sua maneira, com a preocupação de levar o cinema a uma diversidade de perspectivas, em vez de medir seu sucesso em termos quantitativos e explorar as vendas de bilheteria. Ele se referia àquelas produções feitas pela via documental do INCAA, uma conquista dos documentaristas organizada em 2007 que tinha, entre seus objetivos, a meta de permitir que muitos cineastas em ascensão pudessem fazer seus primeiros filmes, já que não era preciso ter formação para ter acesso ao subsídio; além disso, devido aos valores estabelecidos, abriu-se a possibilidade de fazer um grande número de filmes com propostas estéticas muito diversas, em vez de poucos filmes com uma estética padronizada. Nos últimos anos, esse subsídio foi completamente insuficiente para produzir uma filmagem de poucos dias com uma equipe técnica mínima, é verdade. Mas sua existência fazia parte de um ecossistema onde a prática cinematográfica e a subsistência monetária eram uma realidade material para muitas pessoas: a via do documentário era também a possibilidade de técnicos, produtores e diretores terem um esquema de trabalho que oscilava entre o trabalho nesses filmes, onde se explorava o sentimento por um cinema de ousadia estética e contato material com nosso território e suas tensões, e outros trabalhos: produções de maior porte, empregos fixos na esfera privada ou estatal, ensino ou pesquisa. Com isso quero dizer que não tínhamos nenhum paraíso, mas tínhamos condições materiais que nos permitiam experimentar e expandir os limites entre arte e indústria, entre trabalho e prazer, entre obediência técnica de cima para baixo e o erotismo da invenção coletiva.
Entretanto, sob governos progressistas anteriores, enquanto documentários de baixo orçamento eram produzidos a todo vapor, muitos deles estreando fora do país, não havia uma política de exibição local que permitisse que toda essa riqueza de trabalho encontrasse um público. A cota de tela que exigia a exibição de filmes argentinos raramente foi cumprida até ser eliminada por decreto em 2024. Esse fato sempre foi algo dito em voz baixa. Sob o epíteto de "não fazer o jogo da direita" e o medo genuíno de seu avanço, muitas coisas foram mantidas em segredo. Discutir números e como a "indústria cinematográfica" impacta o PIB nacional, como se nossos filmes fossem produtos quantificáveis apenas com base na venda de ingressos, não nos levou a lugar nenhum. Estou voltando, de novo. Em outubro de 2023, quando ainda não sabíamos o que nos esperava, começamos a nos reunir com amigos, conhecidos e desconhecidos que fazem parte desse grande grupo chamado cinema documentário. Alguns de nós tínhamos acabado de participar de assembleias do que era chamado de “Cinema Argentino Unido”, de onde saíamos frustrados porque passávamos horas discutindo se deveríamos apoiar ou não um candidato. Decidimos agir. Mobilizados pela captura do nosso cinema nesses termos puramente comerciais e pela defesa de um candidato que não nos representava, partimos para a formalização do que circulava às escondidas: virar uma rede. Nosso primeiro gesto foi projetar fora das salas de cinema; levar o cinema para as ruas, escolas populares, bibliotecas, parques, centros culturais e qualquer lugar que possa ser transformado em sala de cinema, desde que atenda à exigência de nos reunir coletivamente em frente a uma tela. Não com o objetivo de ganhar dinheiro, ou contar espectadores, ou mesmo exibir “nossos filmes”, mas sim com o objetivo de redescobrir um senso de comunidade que sentíamos ter sido perdido. Uma noite, nos encontramos no apartamento de um amigo, depois que alguns de nós fomos votar, sentindo-nos impotentes por termos que escolher o mal menor para evitar o mal maior. Decidimos votar em um nome para o nosso cineclube. As cédulas foram espalhadas entre nós, junto com taças de vinho e sobras de comida. O gato preto de um amigo invadiu nosso círculo com uma presa na boca e cuidadosamente colocou um rato vivo em cima das cédulas. Desde aquela noite, nos chamamos de R.A.T.A. Rede Anarquista de Trabalhadores do Audiovisual. O primeiro A também deve ser antifascista, amiguera, anormal, afetiva, atolondarada, amatoria, entre outras ocorrências.
Somos trabalhadores sem fábrica lutando por melhores condições de trabalho e para devolver ao cinema o seu espírito comunitário, diz o manifesto que elaboramos nessas primeiras reuniões. Desde então, nos dedicamos a explorar questões sobre as maneiras como vemos e fazemos filmes, ou talvez sobre o lugar que o cinema ocupa ou pode ocupar em nossas vidas neste mundo em ruínas. Compartilhamos essas questões com outros grupos: escolas de ensino médio, associações, coordenadores e diversos grupos com os quais fazemos alianças para fazer nossas projeções. Encontramos uma maneira de realizá-las: um comitê conversa com o grupo com quem faremos a atividade. Ao ouvir e responder às tensões, desejos e necessidades do espaço em que estamos e do momento em que estamos, definimos quais filmes ou objetos audiovisuais serão exibidos, em uma dinâmica específica, e discutimos o processo depois de assistir e ouvir. Entre as conversas preparatórias nasce um título. O evento está sendo anunciado pelo nome, mas os filmes que serão exibidos e os nomes de seus diretores não foram divulgados. Foi assim que produzimos uma série de encontros que se entrelaçam em nosso arquivo, produzindo este poema coletivo involuntário: A Escola da Oposição / A Força da Terra / Um Filme Onde Vencemos ou a Assembleia do Lazer / Controle Remoto Coletivo / Projeção Lésbica Urgente / Fantasias Revolucionárias / Anguyá Desobediente / Abrindo a Ronda / A Escola da Raiva / Montanha adentro / Explosões do Sul / Até a Chuva / Novos Surtos são apenas alguns dos títulos das exibições que aconteceram em vários pontos da Argentina, incluindo uma em Portugal. As exibições são precedidas por uma breve apresentação, às vezes acompanhada de uma leitura. Para a conversa subsequente, sugerimos uma mesa redonda com variações dependendo da ocasião e do local, um papel grande para escrever e desenhar, uma urna para colocar desejos para o futuro, uma gravação, entre outros. É importante que a duração da conversa subsequente seja igual ou maior que a duração total da projeção, porque esse é o objetivo final: abrir um espaço-tempo em que possamos trocar (nós mesmos), apoiar (nós mesmos), tramar juntos.
Quando a urgência das manifestações e dos panelaços nos impediu de organizar uma exibição, surgiu entre nós a ideia de uma intervenção gráfica: filmes sobre papel. É uma série de imagens, incluindo fotografias do passado e do presente, combinadas com slogans e frases escritas à mão que surgiram de nossas discussões ou citações de outras pessoas, impressas em preto e branco no papel mais barato que conseguimos encontrar. Nós as colocamos em muros, pontos de ônibus, monumentos, produzindo uma sequência decidida no momento. Certa vez, os levamos conosco para uma passeata, montados em pedaços de papelão, perdidos na multidão. Os filmes em papel tornaram-se um gesto urgente e efémero que produziu um traço de resistência ao imperativo da obediência e aos automatismos das formas de expressão. Para nossa surpresa, lançamos a iniciativa nas redes sociais e encontramos pessoas de diferentes províncias imprimindo e publicando em suas ruas. É verdade que às vezes podemos ficar impacientes com a falta de respostas concretas à violência que vivenciamos diariamente, mas continuamos confiando que nossas ações multiplicam o coletivo, propondo intervenções e coordenações onde antes não existiam.
Como podemos continuar fazendo filmes em uma época de dizimação das organizações que financiaram nossas produções de baixo orçamento? Como as gerações que nos seguirão aprenderão e farão filmes? Como podemos espalhar a palavra, espalhar as ferramentas e abrir caminho para que outras gerações encontrem uma maneira de narrar (a si mesmas) no cinema, em meio à insegurança no emprego, aos múltiplos empregos e ao cuidado com os entes queridos diante do desastre na saúde e na educação? O que é o cinema e para onde ele vai nessas condições de vida? Como podemos transformar as possíveis respostas a essa pergunta em uma multiplicidade crítica, em vez de nos enterrarmos na apatia e desistir de nossos empregos? Como - nas palavras da minha amiga Tatiana Mazú - defender o que deseja permanecer marginal sem romantizar a insegurança no emprego?
Estamos ensaiando: trocamos trabalho por trabalho entre amigos e colegas, confiantes na potência que um processo tem quando compartilhado, na necessidade dos filmes encontrarem sua direção e sua forma, tomando o pulso de um presente turbulento; sem romantizar, ouso pensar que a busca de equidade nessas trocas fora da lógica de mercado cria apoio mútuo, segundo tempo tão cheio de riscos quanto de gestos de generosidade. O que sabem os neolibertários sobre o mel do apoio mútuo, sobre a faísca que nasce entre dois, três, quatro, dez que se juntam para fins improdutivos, olhar para uma rosa até que seus olhos pulverizem?
Ensaiamos: compomos coletivos, unimos o que está disperso, sistematizamos práticas e trocas, colocamos pautas comuns, reunimos. Fazemos isso mais devagar, às vezes com mais espaço; sacrificamos passeios, viagens, férias, horas de sono. Também ficamos exaustos, perdemos o contato, nos esgotamos, porque não há como evitar que a violência social se metabolize em nossas individualidades. Apesar de tudo, planejamos e conspiramos com outras pessoas, às vezes colocando nossos projetos pessoais em espera. Nós temos um ao outro. Nós nos reunimos. Ninguém se salva sozinho.
“O nosso desafio de época - escreve Andrea Soto Calderón - Consiste, em grande parte, em explorar a capacidade que as imagens têm de mudar uma situação. (...) Pratique estar onde não somos esperados, desenvolva vínculos locais, crie contextos onde as únicas imagens que sobrevivem não são aquelas que têm um grande impacto com o mínimo esforço. Imagens que desafiam os pactos de governança que constituem as formas de visibilidade e suas políticas de distribuição.” Quando penso em outras disciplinas como teatro, dança, performance, fanzines e o vasto universo da publicação artesanal, recupero a perspectiva: na Argentina, grupos dedicados a essas artes e ofícios sempre se uniram, ensaiando sem parar, buscando a forma possível de suas obras para além de qualquer apoio estatal. Grupos de pessoas que se reuniram para experimentar formas de produzir, distribuir e exibir imagens, sons e textos que podem distorcer o senso de realidade. Cooperativas, empresas, feiras, redes, grupos, coletivos, indivíduos anônimos da história roubando cada segundo de “tempo livre” para esculpir o incerto, um vislumbre que nos desperta das realidades opressivas que nos embalam para dormir, que traz o sonho de uma outra vida possível.
Sim, é verdade que o cinema parece inseparável do seu gene industrial; mas não acredito de forma alguma que seu destino esteja no naufrágio total ou na inevitável submissão de nossos filmes aos fundos europeus como o único caminho possível. É urgente recuperar o espírito underground e punk que – além de outras artes – forjou o cinema militante na segunda metade do século XX, (re)inscrever-nos nessa tradição, tomar emprestadas táticas de produção e sobrevivência de outras profissões e ter a coragem de nos perguntar o que o mundo precisa do nosso, sem a urgência do jornalismo nem o derrotismo de quem finalmente desiste. Vamos fazer isso nós mesmos com os outros. Citando R.A.T.A., posso terminar declamando: defendamos as nossas utopias!
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1. O governo anterior era kirchnerista, uma variante do peronismo que se apresenta como alternativa progressista; tinha instrumentos de inclusão, como planos sociais, subsídios e direitos básicos. Além de uma discussão sobre até que ponto os governos capitalistas jogam com a conciliação de classes, é necessário esclarecer o que o atual governo entende por “comunismo”: um piso mínimo de direitos básicos.
2. Mazú González, Tatiana. Por un cine pequeño. Revista En otro orden n°1.
3. Soto Calderón, Andrea. De lo inesperado em La performatividad de las imágenes. Ed. Metales pesados.
4. Nos primeiros filmes em papel feitos pela R.A.T.A., escreveu-se “D.N.U.”, brincando com as siglas do Decreto de Necessidade e Urgência, e apareceu o slogan “Defender nossas utopias”.
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