Reencantar o Imaginário: Exu nos dá direito ao riso
- Clara Anastácia
- há 6 dias
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Por Clara Anastácia | Metacrítica

*Este texto faz parte da pesquisa sobre o Melodrama Decolonial de Clara Anastácia e foi apresentado em fala durante a mesa de conversa "Elas dirigem o Riso" na 20ª CineOP.
Há uma grafia grande, diria quase infinita, para se falar sobre o trauma que é o Brasil. Essa invenção de país, que também é ferida; essa ficção, esse mockumentary que vivemos; essa interseção racial que nos provoca, a todo momento, a nos analisarmos e nos questionarmos: “quem sou eu?”. Nós vivemos uma busca contínua por entender quem se é dentro de um país que tenta, historicamente, desfigurar a identidade das pessoas negras, indígenas, as racializadas e as periféricas. Isso está no nosso dia a dia, isso está nos nossos personagens, nas nossas histórias, naquilo que entendemos como “um cinema de verdade"ou “um cinema sério”.
A história contada sobre o Brasil nos provoca a falar sério. E “falar sério” é algo pasteurizado pela colonização. E essa seriedade foi construída de forma a impedir o direito ao riso. Na semiótica da arte colonial, o riso é algo das camadas populares, e com certeza é, afinal fazer festa, dançar e rir sempre foi uma ação radical de sobrevivência dos povos explorados nesta terra. O esperado de nós, pessoas de cor, é uma boca serena, de linguagem comedida e sóbria, cativa de maneira que ao falarmos sobre nós estejamos sempre a falar com dor, com lágrima. A violência estrutural que forma o Brasil, torna a tragédia/o drama gêneros aceitos para discussão, para disputa de linguagem e identidade, ignorando totalmente a comicidade como um lugar possível, o riso como um aliado no processo de reencantamento.
Mesmo sem máscara para nos impedir de falar, ainda engolimos a palavra antes de dizê-la e com isso perdemos a capacidade de dobrar a linguagem. E existem muitos meios de dobrar a linguagem, inclusive com o riso. Hoje, vasculho nesse imenso palheiro que é a busca por uma linguagem que dê conta dessa dobra (se é que há uma linguagem que dê conta) e retiro uma agulha fina, grande, possível de remendar uma ferida aberta. Talvez não de curá-la totalmente, pois é preciso muito mais para curar o Brasil de si mesmo, mas retiro um objeto que remenda, que alarga uma colcha e o tempo. Puxo uma agulha de nome “riso”, traduzida para o cinema como um gênero: a comédia.
Mas antes da comédia: o riso, a gargalhada, a barriga que se comprime ativando o umbigo, o centro do corpo. Eu, como uma pessoa de axé, acredito que tudo, para “ser”, precisa antes se encantar, e o riso é um rito de encantamento, de presença, gerador de memória. Enquanto a seriedade colonial nos faz acreditar em uma cabeça apenas de uma cor, o riso (esse disruptivo e inconclusivo) nos faz ter uma cabeça de duas cores, confundindo, traindo a verdade, dobrando a linguagem, fazendo o trabalho parecer descanso e o descanso parecer trabalho. Não à toa, Exu gargalha, rodopia o salão com um riso na boca em tom de deboche, provocativo, nos tirando lágrimas e gargalhadas ao mesmo tempo. Orunmilá deu a Exu o direito de brincar falando sério. Exu foi o primeiro a ter um orí fixado nos ombros, pois a lógica, para Exu, precisa sempre estar sendo debatida. Exu escolhi morar fora de casa, pois, para dobrar a lógica, é preciso sempre estar na passagem, no encruzamento dos corpos, das ideias e das palavras.
E, ainda falando sobre o riso, Exu e o Brasil, me deparo diretamente, como uma pessoa do Sudeste, nascida no Rio de Janeiro na favela da Pedreira, com a Umbanda e a falange de Exu: os Exus e as Pombagiras. Me deparo e me encontro com esses ancestrais que passaram, em algum momento, por essa terra, que se encantaram e hoje retornam para gargalhar: palavras, conselhos, histórias. Me relembrando sempre que o riso é um direito ancestral. Falar sério também pode ser com a boca escancarada, com os dentes e a língua à mostra, com o corpo dançarino - e quando falo dança amplio a ideia de coreografia, composição, linguagem. A gargalhada de Exu nos ensina que, ao escrever comédia, é preciso escutar o riso como herança e linguagem ancestral, é preciso entender que o ecoar da gargalhada passeia no tempo e no espaço. Se Exu gargalha, é porque o riso constitui uma dimensão ancestral da experiência negra que precisa ser explorada e valorizada na dramaturgia.
O drama, o romance, tudo isso nos exige falar sério demais… Nós, que somos personagens, consequência, testemunhas de uma história e, ao mesmo tempo, aqueles que sonham com a reconstrução dela, com um futuro ancestral deveríamos ter mais coragem para debochar, gargalhar, cantarolar. O riso, quando se apodera de nós, é entidade. Ele invade nosso campo astral, ele nos faz entrar em transe, oxigenar o orí, ativar o centro. Se rir: chorando, brigando, transando, andando, cantando, escrevendo, pensando, nadando, lembrando. E a memória é algo tão negado a nós… Imagina o riso como dispositivo de uma memória coletiva que pouco nos é contada. Estamos sendo
fadados a contar sempre com um melodrama colonial sobre a criação do Brasil. Mas nunca nos propusemos a contar, entre gargalhadas, um melodrama decolonial sobre a fundamentação do Brasil. E criar é tão diferente de fundamentar… E talvez esse seja o maior compromisso do cinema que se dispõe a gargalhar ao lado dos ancestrais: encontrar no riso uma ação contra-colonial, uma fundamentação e entender que fazer comédia é um ato político radical.
Existem muitos pontos de Umbanda, relacionados a Exu, que narram bem a luta de uma resistência à colonização e à demonização dos corpos racializados. O riso como espanto da morte, da escravização; o riso como afastamento do cale-se colonial. O riso no lugar do choro, não como alienação, ou doutrinação, mas como subversão do esperado. Rir não é um estado de alegria, somente, rir pode ser um estado de suspensão e resistência.
“Exu ri, exu ri, exu ri
Para não chorar
mas que linda risada que Exu vai dar
Rí gua gua gua".
“Foi condenada pela lei da Inquisição
Para ser queimada viva
Na Sexta-feira da Paixão
O padre rezava
E o povo acompanhava
E, quanto mais o fogo ardia,
A Padilha gargalhava”
Perceba que, para fazer rir, para fazer comédia, é preciso muito mais do que um simples entendimento do que é provocar o riso em alguém. Nós, pessoas de cor, descendentes de africanos, dos povos originários. Nós que adoecemos a floresta e resolvemos, por pura colonização, cultuar a cidade, o capitalismo, esquecemos que o riso deve ser uma agulha fina, pontiaguda, que costura tempos, que espeta aquele que está prostrado, desperta aquele que está dormindo, que oxigena o orí, e que bombeia o sangue… Só quem está vivo gargalha e é por isso que os ancestrais riem na nossa cara: eles desejam nos ver vivos, mesmo depois de mortos.
Durante muito tempo, o riso só esteve associado à representação de personagens de cor e racializados que, em vez de expressarem a complexidade de suas experiências, foram reduzidos a estereótipos. Uma forma de controlar a imagem, de castrar a nossa capacidade de identificação, nos levando a um afastamento e a uma vergonha de si mesmo. Com a criação de figuras caricatas, moldadas por uma lógica de dominação, esses personagens não riam por escolha própria, mas eram feitos para provocar o riso alheio - um riso da vergonha, que reforça a marginalização, naturalizando o racismo e desumanizando nossas existências de cor. É urgente ressignificar o riso, deslocá-lo do lugar da submissão, sair da periferia e encontrar o centro, ser a encruzilhada, como propõe a figura de Exu, que ri diante da morte ao ponto de fazê-la dançar.
Fazer comédia é abrir todas as bocas. É tomar para si o direito a rima, a palavra, a linguagem. Requer intelectualidade versa e reversa, requer um pensamento que construa e destrua. Fazer comédia é percorrer os quatro cantos da encruzilhada e ainda estar no meio dela; é ter ouvidos que veem e olhos que escutam. É necessário ter uma boca que fala ao mesmo tempo que mastiga.
Só Exu embriagado é capaz de convencer um alcoólatra a parar de beber. A contradição organiza o caos na comédia, ela que dá permissão para deboche expor a falta de respeito. É a contradição que sustenta os pilares da comédia, que permite um personagem despolitizado falar o tempo todo sobre política. No final, não basta uma história de personagens que cumpram um papel social, na comédia é preciso que os personagens questionem os papéis da encenação social. Na comédia é preciso uma história que fale certo por palavras trocadas, saber ser político sem ser, não há receita, nem lógica certa. Fazer comédia exige risco, sacrifício e contradição. É preciso trair a linguagem colonial. E lembrar: Se Exu gargalha, é porque o riso é nosso por direito ancestral.
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