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A língua das meninas raivosas: "Baise-moi" (2000)

  • Foto do escritor: Juliana Gusman
    Juliana Gusman
  • 29 de ago.
  • 10 min de leitura
Baise-moi (Virgine Despentes e Coralie Trinh Thi, 2000)
Baise-moi (Virgine Despentes e Coralie Trinh Thi, 2000)

Por Juliana Gusman | Ensaios


*Este texto foi escrito para a sessão comentada de Baise-moi no contexto da Mostra "Quando eu sou o outro: duplos, espelhos e imitações", realizada entre os dias 14 de agosto e 6 de setembro de 2025, no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte. Agradeço ao curador, Luiz Fernando Coutinho, e ao gerente do cinema, Vítor Miranda, pelo convite.


Uma voz de adolescente punk que aprendeu a falar com um programa de produção de gênero de homem cis, uma mente aristocrática de loba futurista que habita um corpo de puta, a inteligência de uma vencedora do prêmio Nobel encarnada em um corpo de vira-lata. Um milagre biopolítico: a evidência de que novas recombinações genético-políticas e literárias são possíveis. Ela se levanta e dança diante da janela sem cortinas para glória da vizinhança. Todas as novas gerações de pequenas sapatonas podem ser encontradas no corpo que abriga essa voz, em seus territórios neurais. Venham, meninas, as que usam véus, e as que não, as que têm filhos e as que não, as que chupam paus e as que não, as que querem ter bigode e as que não. Venham. Tomai e comei.


Paul B. Preciado, sobre V.D.

 


Preliminares: começar com uma cena

 

Regan ainda conserva uma pele rubra quando dois médicos, atônitos, entram em seu quarto. A garota se contorce ferozmente sobre o lençol azul-turquesa de sua cama, até que, entre urros, seus globos oculares se dobram na própria cavidade. Ela assume uma voz grave, que parece lhe partir em duas: de sua figura infantil e miúda transborda o verbo purulento do demônio viril: “Fuck me”. Me foda. Baise-moi. Com o vômito da menina monstruosa que, em O exorcista (William Friedkin, 1973), encarna os assombros masculinos, a escritora e cineasta Virginie Despentes batiza sua obra-prima – assim como Regan, um pequeno diabo duplicado, no formato de livro e filme.


Na França, a versão cinematográfica deste pulp-pornô-feminista semiautobiográfico, produzida na aurora dos anos 2000, alguns anos depois da escrita do livro que lhe deu origem, foi censurada, sob protestos da extrema-direita, três dias após a sua estreia. Nos Estados Unidos, teve o título traduzido como “Rape Me” – “me estupre”, presumivelmente porque a sua literalidade não seria tolerada em jornais ou outdoors. Era mais fácil assimilar o masoquismo suplicante das mulheres que não se esquivam do destino patriarcal do que o imperativo, cru e ambíguo, da vontade de foder e ser fodida.


A brutalidade da forma fílmica também eriçou audiências. Despentes e Coralie Trinh Thi, co-diretora, não teriam o refinamento estético de uma Catherine Breillat, acusaria parte da imprensa especializada, enojada pela pobreza visual da tecnologia do vídeo – apesar do apoio concreto que a realizadora ofereceu a Baise-moi, organizando, inclusive, manifestações a seu favor. Roger Ebert, o primeiro crítico de cinema a receber um prêmio Pulitzer, descreveu-o como um blefe: “As diretoras sabem que seu filme é tão extremo que a maioria sentirá repulsa, mas alguns criarão defesas e interpretações intelectuais para ele, poupando-as do trabalho de deixar claro o que querem dizer. Não consigo engolir”. Como Manu, que, em certa cena, regurgita o pau que leva à boca, os resenhistas se engasgaram com essa rajada orgástica de antifeminilidade e contracinema.

 

A fêmea-alfa mata anjos do lar (citando outra Virgínia Loba, Woolf)

 

Antes de abraçar o movimento feminista, Despentes transou com o movimento anarcopunk europeu dos anos oitenta. Caroneira – a única maneira de alimentar a sua tara e sua fome por shows de rock –, ela era uma jovem de dezessete anos, All Star vermelho e cabelos verdes quando foi estuprada, junto com uma amiga, por três caras com uma caminhonete e uma espingarda. O desamparo no meio da estrada lhe deixou com os rumos em carne viva. Buscou, como sempre, consolos e caminhos nos livros. Contudo, pela primeira vez, deparou-se com a impotência da linguagem, incapaz de pronunciar os seus traumas. A violência fundante da feminilidade domesticada, obediente, envergonhada e normativa havia conseguido se esquivar, até então, da força ontológica da palavra escrita.

Este silêncio histórico e tático seria estilhaçado, porém, por Camille Paglia. Na síntese de Despentes, em seu Teoria King Kong, a teórica estadunidense teria dito, em um artigo para a revista Spin nos anos 1990, que o estupro é:

 

Um risco inevitável, um risco que as mulheres devem levar em conta e aceitar correr se desejam sair de casa e circular livremente. Se isso acontecer com você, levante a cabeça, dust yourself e dê a volta por cima. E se isso te amedrontar demais é melhor ficar na casa do papai e da mamãe fazendo as unhas. (Despentes, 2016, p. 34)

 

Não se arromba portas com sutilidades. Passada a revolta imediata provocada por este golpe seco e simbólico, Despentes entendeu que, a partir de então, nada mais ficaria “fechado, trancado como antes”.

 

Ela [Camille Paglia] nos instigava a pesar o estupro como um risco inevitável, inerente à nossa condição de meninas. Uma liberdade incrível da desdramatização. Sim, havíamos saído de casa, alcançando um espaço que não nos era destinado. Sim, havíamos sobrevivido ao invés de morrer. Sim, usávamos minissaias sem estamos acompanhadas de um cara, de noite, sim, fomos estúpidas e fracas e incapazes de quebrar a cara deles, fracas como as meninas aprendem a ser quando são agredidas. Sim, aquilo tinha acontecido conosco, mas, pela primeira vez, compreendíamos o que havíamos feito: tínhamos saído para a rua porque, dentro da casa do papai e da mamãe, nada interessante acontecia. Corremos o risco, pagamos o preço, e mais do que ter vergonha de estarmos vivas, poderíamos agora decidir nos levantar e nos recuperar da melhor forma possível. [...] Ela foi a primeira a tirar o estupro do horror absoluto, do não dito, disso que sobretudo não deveria jamais acontecer. Ela fez do estupro uma circunstância política, algo que deveríamos aprender a encarar. Paglia transformava tudo: não se tratava de negar nem de sucumbir, se tratava de viver com. (Despentes,2016, p. 35-36)

 

Por sua vez e conta, Baise-moi implodiria a impossibilidade narrativa do estupro somente quando Despentes se torna e se entende como uma pessoa pública – no primeiro momento, não pela via consagrada da literatura, falando “do que deveria continuar em segredo”, mas pelo gueto obsceno e obscuro da prostituição. Nos dois ofícios, iniciados concomitantemente (e não por acaso, de acordo com ela), opunha-se à reclusão do “lugar que nos é reservado”. Rejeitava, também, o confinamento autoimposto que se espera da vítima digna: com um único gesto, Despentes abria as pernas, ideias e feridas comuns.


O livro, gestado em abril de 1992, foi recusado por nove editoras até ser publicado pela Florent Massot em 1993. Foi se afamando aos poucos, à medida que a autora penetrava circuitos midiáticos menos marginais. Ela se aliança com três atrizes pornográficas – a já mencionada Coralie Trinh Thi e as protagonistas Karen Bach e Raffaëla Anderson – para adaptar o seu avesso de Thelma e Louise com entranhas expostas, a saga alucinada de Manu e Nadine, as “piranhas degeneradas”, assassinas siamesas de “caralhos plastificados” e de burgueses letrados, que, nas palavras de uma terceira personagem,

 

nunca se tocam, mas ficam de olho uma na outra, procuram uma a outra a todo momento. Quando elas riem, é sempre da mesma coisa, e elas estão sempre próximas. Quando uma acende o cigarro, ela automaticamente o entrega a outra, sem pausas. Elas terminam as frases uma para outra repetidamente, ou dizem algo ao mesmo tempo. Elas sempre servem dois copos. Sem perceber que estão fazendo isso.  Elas usam as mesmas palavras, as mesmas expressões. Você pode sentir que elas estão em conluio. Como um animal com duas cabeças, meio fascinante, na verdade. (Despentes, 1999).

 

Após Baise-moi, Despentes seguiu soltando a língua, engolindo tabus e parindo criaturas indigestas. Em 2004, lança Bye bye Blondie, outra obra de tintas autobiográficas sobre o reencontro tempestuoso entre Gloria, uma desvalida, e o apresentador de TV Erick Muir, que se conhecem durante a adolescência nos anos 1980 após uma internação psiquiátrica compulsória, transubstanciada sapatonicamente para o cinema em 2012, novamente pela própria Despentes. A essa altura, ela já havia abandonado a heterossexualidade e se convertido, conforme os desígnios de Paul B. Preciado, seu companheiro de longa data, na “puta das lésbicas e dos trans, na chefa dos homens-menina”. Teoria King Kong, de 2006, tecido entre vícios frenéticos, o fumo e a foda, consolidou no mercado editorial a terrorista de gênero excluída do “mercado da boa moça”.   

 

É impossível estuprar as pornofeiticeiras 

           

Mas Baise-moi, na sua dupla materialidade, segue, até hoje, denegado ao mercado da cultura legítima. No acontecimento-motor deste road trip, o plano detalhe da buceta invadida apenas virgula uma sequência longa e quase insuportável de aniquilação absoluta. Estupro, estupro, estupro: à luz do dia e de luz acesa, sem a sugestividade palatável do extracampo. Se a estratégia masculina sempre foi “dar outro nome à coisa, enfeitar o ato, fazer rodeios”, a resposta feminina e feminista de Despentes foi, apesar dos riscos, estraçalhar aparelhos de silenciamento historicamente mobilizados tanto por agredidas, quanto por agressores, e colocar pingos de porra na porra dos is. A representação explícita, dilatada e detalhada de um rito presumivelmente inominável não pode ser mais imoral do que desviar o olhar do rito em si. Estupro, estupro, estupro: as engrenagens dessa tecnologia produtora de subjetividades quebradas, que nos sujeita e assujeita, funcionam sistematicamente e em pleno vapor. Lidemos com isso.


Além do mais, é justamente a hiper-transparência desta cena seminal e metonímica que conjura uma postura ética. Podemos falar da politicidade de um antirrealismo-pornô: essa mise-en-scène, tão absurda e singular, não poderia se constituir sem consentimentos. O desamparo das personagens é inversamente proporcional ao domínio concreto de atrizes experientes. Entre a angústia e a aversão, sabemos que essas mulheres, paradoxalmente, estão seguras. Essa ambiguidade acompanha, ainda, as figurações dos assassinatos cometidos, posteriormente, por Nadine e Manu, com seus excessos (conscientemente) teatrais e autoirônicos que engrossam distanciamentos críticos. A trilha sonora, metálica, ácida, estridente, amplifica a artificialidade da coreografia homicida. Não se pode levar um cu explodido tão a sério.


O suposto amadorismo da câmera, por sua vez, é uma aposta no amor à desordem. Os articulistas falam de uma inabilidade na composição dos quadros, mas não há nada de fortuito na instauração do caos. De início, o aparato barateado do vídeo sempre abriu brechas para os discursos indóceis. Um projeto como Baise-moi não hackearia circuitos artísticos de outras maneiras. E ele demonstra, de fato, uma lucidez estrutural. O filme persegue a mesma configuração do livro, erigindo as narrativas paralelas e espelhadas de Nadine e Manu até seu ponto de inflexão e fusão – uma alquimia vulcânica que sacode e movimenta espaços intra e extrafílmicos, implicando o par que filma no ritmo das ações e pulsões vida e morte do par que é filmado. Nadine e Manu dançam juntas para entrelaçar e selar horizontes e corpos, flertando o tempo todo com a presença invisível de Virginie e Coralie, contaminadas pelos fluxos de expressão do prazer.


Há, ademais, refinamentos na montagem. Não só em exercícios como aquele em que uma a propaganda de faca de cozinha, que pica uma linguiça em fatias finas, se intercala, sarcástica e premonitoriamente, com o sexo oral performado por Nadine em serviço, mas naqueles que jogam com nossas dinâmicas de (des)identificação. A princípio, alinhamos perspectivas com as meninas rebeldes: durante esse mesmo programa, por exemplo, a câmera subjetiva adota o ponto de vista da prostituta interpretada por Bach, que, pendurada na borda da cama, enxerga as imagens televisivas, alternadamente dispostas na tela, de ponta-cabeça. Vez ou outra, há algum lampejo de generosidade sedutor. Mas as realizadoras também nos deslocam para o centro da mira impiedosa de Manu e Nadine. Ao apontar a arma para a câmera, elas rompem pactos pré-estabelecidos e nos transformam em suas presas. De qualquer jeito, prevalece a contradição oscilante entre os vínculos complacentes e o antagonismo fatal que firmamos, muito frouxamente, com essas garotas más, que não poupam ninguém.


E, mais uma vez, é nesta contradição que Baise-moi contorna sua aparente imoralidade. No jogo de aproximações e afastamentos, de reflexos inconstantes de espelhos quebrados, nunca acatamos plenamente a matança empreendida por Manu e Nadine, tampouco podemos condená-las por sua raiva festiva. Afinal, não falamos de um ódio incendiado por um episódio particular – que, por si só, já valeria a revolta –, mas de uma cólera anarquicamente direcionada ao mundo que permite com que o estupro seja possível – e pior, necessário. Uma simpatia irrestrita domaria o savoir-faire de quem não busca se adequar aos nossos parâmetros de sociabilidade falidos.


Logo, Baise-moi não é, exatamente, um rape revange. As protagonistas não perseguem uma simples vingança pela agressão infligida. Elas são a representação selvagem da feminilidade que um estupro falhou em produzir. “Foi o projeto do estupro que refez de mim uma mulher, alguém essencialmente vulnerável”, escreve Despentes, que imagina, então, o que aconteceria se esse projeto, um dia, quiçá, falhasse. Chacinas, talvez, mas também a revolução de uma paixão umbilical, como a de Manu e Nadine, a comprovação inexorável de “todas aquelas teorias nobres sobre almas gêmeas” que “pareciam tão suspeitas” (Despentes, 1999).


Baise-moi é uma pane no sistema e no cinema. É uma descida ao inferno, como sugeriu Teresa de Lauretis ao pensar sobre uma safra de obras de realizadoras mulheres, que despontam a partir dos anos 1990, nas quais o calor da (homo)afetividade, a frieza de homicídios e os desejos de (auto)destruição se articulam erótica e perigosamente. De Lauretis diz não saber se “estes filmes servirão de advertência ou estímulo ao feminismo que virá”, se eles nos conduziriam, como num ricocheteio de bala, a uma repressão no terreno da família e dos bons costumes, ou se poderiam nos induzir uma autoanálise que “confronte a morte que está em nós. Em todas nós, velhas e jovens, lesbianas e heterossexuais”. A resposta de Manu e Nadine, as soerus-amantes-camaradas, à realidade material que lhes cerca pode ser perversa, mas elas estancam uma “empreitada ancestral”, como se refere Despentes, que ensina as mulheres a não se defenderem ou a dirigirem punições contra si mesmas, para que jamais possamos gozar tranquilas. Baise-moi é a gasolina na fogueira das bruxas, é uma terapia de choque na cadeira elétrica, é veneno e cura. Na sua dose moderada de setenta e sete minutos, me arrisco a devorá-lo como um poderoso antianestésico contra sensibilidades dormentes. Estamos vivas. E “invencíveis, mesmo sem nenhuma chance” (Despentes, 1999).

 

Referências

 

DE LAURETIS, Teresa. Uma descida aos infernos. Revista Labrys, n.3, 2003. Disponível em: < https://www.labrys.net.br/labrys3/web/bras/delauretis1.htm>. Acesso em 20 set. 2024.

 

DESPENTES, Virginie. Baise-moi. Nova York: Grasset & Faquelle, 1999.

 

DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo: n-1 edições, 2016.

 

PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017.

 

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