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Quebrando espelhos: prostituição e monstruosidades feministas no cinema de Marleen Gorris

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    Juliana Gusman
  • 4 de out.
  • 10 min de leitura
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Por Juliana Gusman | Ensaios


*Texto originalmente escrito para o XXVIII Encontro da Socine, em Belém, Pará.

           

Há cinquenta anos, Jeanne Dielman cravava uma tesoura na garganta de um cliente preservando o mesmo compasso brando com o qual, segundos antes, abotoava sua blusa. Do ângulo de um espelho, vê-se o golpe fatal que interrompe tanto o deleite masculino pós-orgasmo, quanto o fluxo ontológico entre a dona de casa e prostituta – o díptico antagônico personificado por Delphine Seyrig, que estanca sua aparente alienação com o sangramento discreto da vítima aniquilada, ainda na cama, em tom menor. A obra magna de Chantal Akerman, que dilata a duração dos planos para acolher os gestos femininos – o mover-se nos terrenos da intimidade que nos conduzem, rotineiramente, à reprodução da vida – foi reclamada pela teoria feminista como expressão máxima de um “contracinema” (Johnston, 1999). Estreou em Cannes um mês antes da insurreição que levou mais de 200 meretrizes a ocupar a catedral de St. Nizier, em Lyon, França. Também em 1975, Carole Roussopoulos, inscrita em uma outra tendência do que se convencionou chamar de “cinema de mulheres” (Veiga, 2019), de vocação militante, documental e intervencionista, registrou o marco zero do movimento organizado de trabalhadoras sexuais. Les prostituées de Lyon parlent é o fruto proibido de um lampejo quase milagroso de tino histórico.


É verdade que, nesta segunda vereda criativa, alianças insólitas – as aproximações entre mulheres que deveriam, em nome da manutenção da normatividade vigente, se manter afastadas, como asseverou Maria Galindo (2021) – puderam ser mais amplamente firmadas. Afinal, o documentário militante (e curtametragista) sempre foi um campo mais maleável a apropriações insurretas. Com o barateamento dos aparatos de filmagem à época – sobretudo da tecnologia do vídeo –, outras realizadoras, como Carole, puderam assumir riscos e rascunhar outras maneiras de se figurar feminilidades abjetas, inclusive no Brasil. Em outro artigo (Gusman, 2024), escrevi sobre as câmeras mediadoras de Helena Solberg (Simplesmente Jenny, 1977), Célia Resende (Mangue, 1979), Cida Aidar, Inês Castilho (Mulheres da Boca, 1981), Jacira Melo (Beijo na Boca, de 1987; Meninas, de 1989) e Eunice Gutman (Amores de Rua, 1994), que reverberariam, daqui, os ecos de Carol Leigh, nos Estados Unidos, Valeria Sarmiento e Gloria Camiruaga, no Chile, Rosamaría Álvarez Gil, no Peru ou Rosa Martha Fernández, no México, para evocarmos algumas bruxas. O fato é que, naquele contexto, perseguir o lastro ficcional e monumental de Jeanne Dielman era uma tarefa mais obscura.


Foi quase uma década depois de seu lançamento que outra catalisadora dos debates sobre o contracinema, a estadunidense Lizzie Borden, explorou, ficcionalmente, o “space-off” (De Lauretis, 2019) da mulheridade legítima. Working Girls (1986), o seu terceiro filme, concebido durante a produção de sua obra mais celebrada e discutida, Born in Flames (1983), recupera os matizes do cotidiano e os “restos narrativos” observados na obra de Akerman que, contra toda uma tradição cinematográfica masculinizada, contaminam a fatura fílmica. Working Girls se passa durante um dia de trabalho de Molly (Louise Smith), uma fotógrafa lésbica que vive com a companheira e a filha e cumpre dois turnos semanais como garota de programa em um flat elegante, compartilhado com outras profissionais sob a batuta de uma cafetina intransigente.  


Priorizando os interlúdios entre um cliente e outro, Working Gilrs, assim como Jeanne Dielman – manifestamente considerada por Borden uma obra inarredável sobre prostituição (Luers, 2021) – investe na delimitação espacial e no rigor formal embaralhando, politicamente, o comum e (supostas) excentricidades corriqueiras. Na temperatura amena da trama, a prostituição transparece como um ofício tão desagradável quanto outros, nem pior, nem melhor. Diálogos extensos procuram expressar perspectivas de base marxista e putativista, sem recair em tons excessivamente didáticos ou panfletários – dando conta, com sutilezas, de um certo desmonte crítico das engrenagens que movem as dinâmicas da profissão e das desigualdades interseccionais que interferem nas lidas individuais com ela.


Dito isto, entre o hiper-realismo da domesticidade belga e do puteiro high society de Nova York, Broken Mirrors (1984), de Marleen Gorris, estilizou desvios. O segundo longa da realizadora holandesa – que havia anteriormente dirigido A question of silence (1982) – recorre ao cinema de gênero – particularmente ao horror e ao thriller policial – para traçar duas linhas narrativas paralelas: por um lado, perseguimos um vulto masculino, jamais explicitado pelos enquadramentos da câmera, que, sob uma luz azulada e desbotada, persegue e mata donas de casa de classe média, registrando, em polaroides, todo o seu processo de deterioração no encarceramento; por outro, numa atmosfera um pouco mais vibrante do que a do bordel de Working Girls, nos enredamos nas relações  laborais e afetivas do Happy House Club. Broken mirrors – filme de difícil acesso em nosso país, apesar dos agitos que provocou, na Europa e nos Estados Unidos, à época de seu lançamento [1] – prescinde da banalização humanizadora da experiência prostibular, observada em Jeanne Dielman e Working Girls, e inflama monstruosidades para reconfigurar as fronteiras da abjeção feminina.   


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Em certo sentido, Broken Mirrors antecipa em algumas décadas o levante recente que Barbara Creed (2022) designaria por Feminist New Wave Cinema. Contra uma abordagem fílmica histórica que, sobretudo na redoma do horror, vinculou as mulheres, negativamente, ao desvio, ao impuro, – ainda que esse rebaixamento bestificador, calcado na estigmatização dos nossos corpos e desejos, implique, também, a ambiguidade desobediente e propositiva de quem ameaça a ordem – produções contemporâneas têm apostado, às vistas de mandatos sociais agressivos e hierarquizantes, na criticidade de criaturas tidas por eles como imperfeitas. O monstruoso feminino, inicialmente analisado por Creed em seu trabalho matricial de 1993, deixa de ser objeto de repulsa para converter-se em agente de transformação de um mundo, este sim repulsivo, que o rejeita. Logo, nada mais sísmico do que a corporeidade traumática e revoltosa das putas-monstras, o avesso indomável e desordeiro do segundo sexo, que só “torna-se”, como diria Beauvoir, por meio de uma oposição fundante e excludente que não nos interessa deixar intacta.


Gorris desarticula um dos nossos principais binarismos constitutivos ao torcer percepções sobre seu polo perverso. Engordando os excessos de teatralidade da mise-en-scène prostibular, a diretora disseca como sexualidade servil – não só paga, mas aquela que é ofertada de graça – não é um atributo atávico às mulheres, um predicado identitário (depreciativo), mas uma ficção da hipefeminilidade talhada e burilada pela nossa força de trabalho. Na prostituição, em específico, ninguém se vende, como se acostuma aventar: cessa-se ilusões, conscientes e propositais.     


A própria ambientação barroca do Happy House Club, eletrizada pelo uso de cores primárias, por texturas aveludadas e por uma oscilação sedutora de sombra e luz adensa a artificialidade da cena posta. Os espelhos, destacados no título da obra, não são meros caprichos da direção de arte: são a materialidade do jogo representacional que se instituí ali. Um véu interpositivo não nos permite, ao menos por ora, enxergar para além dos seus reflexos. Não à toa, quando a novata Diane, interpretada por Lineke Rijxman, chega ao bordel, ela sequer reconhece Dora, vivida por Henriëtte Tol, que havia lhe indicado o serviço. No palco da zona, Dora e suas colegas, se monstruosas, convertem-se em quimeras, personagens fantasiosas dos medos e anseios dos homens. Não me parece fortuito que, antes do primeiro subir de uma cortina metafórica, a campainha toque duas vezes, como uma espécie de segundo sinal que prenuncia a entrada da plateia ativa desta peça de prazer e gozo. Como bailarinas, as prostitutas retocam a maquiagem, ajustam o porte dos braços, esticam meias-calças e dispõe-se coreograficamente pelo espaço, dançando, sob o ritmo solene dos oboés, cordas e baixos contínuos da ária de Haydn, com o fluxo poético de uma câmera solta, contagiada pela mobilidade de quem a carrega.  


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O tremor da imagem, é verdade, remete a um realismo documental que poderia enfraquecer a qualidade performática da ação em quadro. Contudo, Broken Mirrors alude à face oculta do espetáculo para iluminá-lo por inteiro. Menos do que nos achegar, ética ou empaticamente, das agruras diárias das prostitutas – como fazem, cada qual a seu modo, Akerman e Borden –, Gorris nos convoca seguir o compasso dialético entre o que é narrativamente visível e tornado obsceno. O abjeto da fábula libidinal – o vômito na pia, a porra no lençol, a camisinha usada no lixo, o choro incontido de um cliente emocionalmente vulnerável – também a constituí. Em Broken Mirrors, os acentos realistas elevam, por contraste, a voltagem dramática da ribalta libertina.


No bastidor prostibular, as mulheres confidenciam técnicas e táticas e nos deslindam mistérios. Com os assopros de Teresa de Lauretis (1987), entendo que a alquimia feminista se cozinha nesse endereçamento cúmplice – e, porque não, erótico (quiçá, lésbico). À revelia dos homens em tela, Gorris antecipa e vislumbra as espectadoras que saberão decifrar os seus enigmas. De Lauretis fala de uma “estética da recepção” quando aventa não apenas um “cinema de mulheres”, mas um “cinema para mulheres”, que interpela os sujeitos e o mundo que almejamos construir, sem circunscrevê-los de antemão. Do sorriso falso de Diane, sempre taciturna na sua dupla jornada como puta e mãe, à sua olhada tediosa a um relógio de pulso em meio à transa, como quem conta os segundos para bater o ponto e encerrar labuta, saberemos acolher seus acenos e anseios, incorporando-os, visceralmente, à nossa própria carne. Mesmo diante do ápice orgástico dos programas, Gorris desobedece suas próprias molduras para minuciar os cantos do quarto e partilhar segredos. Também avulta atritos, contradições e possíveis sínteses conciliadoras entre mulheres muito diferentes, que se esboçam do extracampo.  


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A violência explícita, porém, permanece velada. Ela não pertence aos nossos domínios: perpetrá-la como poder é um ato do poscênio patriarcal.  Mesmo quando nos imiscuímos na jornada inclemente do serial killer – que, ao final, se revela como um dos frequentadores mais afáveis do Happy House Club – algo sempre nos escapa. Não se sabe exatamente o que desencadeia o enforcamento cênico de Linda, uma das garotas que lhe presta serviço, ou o suspiro final da dona de casa mantida em cativeiro. A opacidade de seus contornos também é uma elaboração política de quem não coaduna com suas pulsões.


Investindo, então, no desvelamento parcial das intenções masculinas, Gorris instaura outros importantes atritos dialéticos. Além de destrinchar os bastidores da feminilidade dominante, a diretora se infiltra, como pode, no teatro virilidade cínica. O abjeto masculino – igualmente caro ao Feminist New Wave Cinema contemporâneo analisado por Creed (2022) – insurge em seus próprios terrenos e termos: não como uma figura libertária, que perturba sociabilidades brutais, a lei e a linguagem, mas como a prova encarnada de sua hipocrisia absoluta (Creed, 2022). O assassino incógnito encena cortesias: é bem-vestido, asseado – sempre veste um par de luvas – e metódico, um protetor da ordem, que lhe consagra infrações, em seus detalhes. Sua misoginia encoberta, escancarada por Gorris, é bem acomodada no universo simbólico que a nega em conluio. Marido e trabalhador, o homem incialmente sem rosto – o que expande tanto o suspense que o ronda, como seu atributo metonímico – coexiste, sem conflitos normativos, com ímpetos de destruição e morte. O lar burguês não é menos perigoso que esquinas sujas. Enquanto o monstruoso feminino implode a ideologia[2], o masculino abjeto é o fantasma que tenta conter a integridade das suas ruínas.


O controle ambicionado pelo assassino também passa, como anteriormente mencionado, pela transposição do sofrimento das mulheres em imagem. Ele fotografa as donas de casa capturadas para perenizar sua condição de vítimas. Como fez e faz o próprio sistema-cinema – acusa Gorris com a faca da metalinguagem – o abjeto masculino cristaliza a imobilidade de quem é produzida, por uma tecnologia de gênero (De Lauretis, 2019) performativa (Butler, 2016)[3], como um sujeito-objeto que não consegue reagir.  


No entanto, as mulheres – as mais e menos monstruosas, não importa – reagem e, ao recusar a inércia dos desamparados, elas estremecem a harmonia masculina. Quando a dona de casa deixa de temer o algoz, abdicando do pavor que deveria orientar o seu comportamento arredio, o homem que nunca dirige a palavra àquelas que não considera humanas começa, incontidamente, a gritar. Chama-a, claro, de “puta”, mobilizando a alcunha, a essa altura esvaziada de sua conotação pejorativa, para provocar repulsas que a reconduzam de volta, e passivamente, ao seu lugar. A não sobrevivência, longe de ser uma simples rendição, é a fuga possível.


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O assassino é confrontado uma última vez quando as duas narrativas afluentes desaguam na sala espelhada do Happy House Club. Uma das garotas é esfaqueada e socorrida justamente por ele, que a leva ao hospital, junto com Diane e Dora. Ao retornarem ao bordel, o homem insinua, com o dinheiro que retira da carteira – jamais com a convocação humanizadora do verbo –, que sua gentileza deveria ser retribuída com uma foda a quente, a despeito do abalo coletivo. O close imediatamente anterior nas suas mãos enluvadas, tantas vezes detalhadas por Gorris, confirma nossas suspeitas. Diante de sua insistência e hostilidade afônica, Diane, mesmo ignorando o cume de sua maldade – “even the nice ones aren’t nice [4], basta saber –, empunha uma arma escondida na gaveta e mira-lhe a cabeça. Precisa, faz a bala raspá-lo em sinal de alerta e lhe devolve o silêncio deslegitimador que cabe ao não humano. Sinaliza, rápida e veementemente, que o abjeto masculino deve partir.


Diane não é arrebatada pelo mesmo impulso que sua antecessora cinematográfica, Jeanne Dielman. Em vez de eliminar um dos representantes do poder patriarcal, essa outra puta-mãe fulmina os seus dispositivos coercivos de olhar e matar. No epílogo deste mito sexual, atira em sua própria imagem multi-refletida. Acompanhada de Dora, abandona, cerimoniosamente, o Happy House Club e a esfera da inteligibilidade hegemônica. Sua vingança é a utopia feminista: estilhaçando a mulher que é puro texto, atravessa espelhos, como fez Alice para retornar ao país das maravilhas indômitas. Entre cacos, Marleen Gorris abriu caminhos.    


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Referências

 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

 

CREED, B. The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis. Nova York: Routledge, 2007.

 

CREED, B. Return of the Monstrous-Feminine: Feminist New Wave Cinema. Nova York: Routledge, 2022.

 

DE LAURETIS, T. Technologies of gender: Essays on Theory, Film and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

 

DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 121-155.

 

GALINDO, María. Cara de Puta. Eco-pós, v. 24, n.1, 2021.


GUSMAN, J. Prostitutas, feministas e as alianças insólitas no cinema de mulheres (1977-19940. Doc-Online: Revista Digital de Cinema Documentário, n.35, p. 59-76, 2024.


JOHNSTON, Claire. Feminist cinema as counter cinema. In: THORNHAM, Sue. Feminist Film Theory: a reader. Edinburgh University Press, 1999.


LUERS, Erik. “I could shoot when I had Increments of $200 to sped”: Lizzie Borden on Working Girls, Harvey Weinstein and Changing Perceptions of sex work. Filmmaker Magazine, 14 jul, 2021. Disponível: <https://filmmakermagazine.com/111980-i-could-only-shoot-when-i-had-increments-of-200-to-spend-lizzie-borden-on-working-girls-harvey-weinstein-and-changing-perceptions-of-sex-work/>. Acesso em 15 dez. 2024. 

 

MAIOR, Gabriela Souto. Entre a imagem e quem olha. Cinética, 2021. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/nova/broken-mirrors-marleen-gorris-gabriela/

 

VEIGA, Ana Maria. Teoria e crítica feminista: do contracinema ao filme acontecimento. In: HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.

 


[1] O filme estreou em setembro de 1984 no Festival de Cinema de Utrecht, seguindo para o Festival Internacional de Cinema de Berlim, de Toronto e para o Frameline, em São Francisco, onde foi consagrado com o prêmio do público.


[2]Entendida, aqui, não como um sistema de pensamento, mas como um conjunto de valores, representações e visões de mundo que legitima relações de poder.


[3]  Conforme De Lauretis, as “tecnologias de gênero” são dispositivos capazes de regulamentar os significados sobre os corpos, que têm priorizado os signos do feminino como um dos principais objetos de conhecimento e, portanto, de manipulações. Para a autora, seu teor performativo e reiterativo provoca uma distinção conflituosa entre a “Mulher”, com maiúscula, a representação sintetizadora de uma identidade, e as “mulheres” reais, engendradas nas relações cotidianas (De Lauretis, 2019).


[4] “Mesmo os bons, não são bons”.

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