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O poder de estar aqui: memória da ditadura militar argentina nos filmes de Albertina Carri

  • Foto do escritor: Clara Bastos Marcondes Machado
    Clara Bastos Marcondes Machado
  • há 6 dias
  • 8 min de leitura

Fotograma Los Rubios Albertina Carri
Fotograma Los Rubios Albertina Carri

Por Clara Bastos Marcondes Machado | Ensaios


Os rios da memória nem sempre são caudalosos, mas mesmo que uma pequena linha de água atravesse o seu leito, é tão teimosa que mudará a terra por onde passa, nem que seja pela própria passagem do tempo. Eu quero ser esse leito, eu quero ser essa terra, eu quero contar ao mundo sobre o poder de estar aqui e ainda lembrar. (CARRI, 2005)

Quando Albertina Carri é convidada a montar uma exposição no Parque de la memoria em Buenos Aires, centrada nos vestígios do passado violento do país, sua obra já elaborava a memória da ditadura militar argentina há mais de uma década. O desejo expresso no catálogo da exposição, de ser o rio que é atravessado pelo fio da memória, ecoa um movimento manifesto em seus filmes que tematizam a ditadura, nos quais a memória se coloca cada vez mais como uma força que atravessa o corpo, ou é atravessada por ele. Filha de militantes assassinados pela repressão, a cineasta é autora de uma obra heterogênea que, entre filmes que abordam a memória do regime, trata também de temas como família, sexualidade, identidade queer e violência, seja no documentário, no ensaio, nas artes visuais ou na ficção, passando mais recentemente por explorações do pós-pornô. Em seus filmes, a memória se mostra sempre lacunar e mediada pela subjetividade, e há neles uma preocupação constante com o corpo, seja o corpo ausente dos mortos ou seu corpo vivo, que lembra, que se faz leito de rio para que passe o fio da memória.


Albertina Carri faz parte de uma geração de cineastas latino-americanos que colocou a subjetividade e o relato autobiográfico no centro da produção documental no continente, que se afastou da pretensão de objetividade, preferindo assumir um ponto de vista pessoal em sua prática cinematográfica. Atuando na virada do século, essa geração fez uso do documentário autobiográfico e performativo também como forma de lidar com a história violenta do continente no século XX, colocando sua experiência pessoal como mediadora de uma memória política (Barrenha; Piedras, 2014). Em meio a essa produção “em primeira pessoa”, uma safra de filmes de filhos, netos e sobrinhos de militantes políticos envolvidos na luta anti-ditatorial usou a linguagem documental para buscar histórias apagadas de suas famílias e países, unindo a preocupação política com o pessoal.


É nesse contexto que Albertina Carri realiza Los Rubios (2003), seu segundo longa-metragem, o primeiro a abordar a história de sua família. O filme segue os passos de um filme “de busca” (Bernardet, 2005) – a diretora e sua equipe viajam com a intenção de descobrir mais sobre os anos de seus pais na clandestinidade. No processo, realizam entrevistas com amigos e companheiros de militância, visitam o bairro em que moraram e falam com seus antigos vizinhos, pesquisam em arquivos e visitam o centro de detenção Sheraton, onde os pais da diretora ficaram sequestrados. No entanto, Albertina subverte o principal pilar do documentário em primeira pessoa – a identidade da realizadora. A Albertina que vemos realizando entrevistas, conversando com sua equipe ou mesmo tentando conseguir financiamento não é Albertina, mas a atriz Analía Couceyro. Paralelamente, vemos a Albertina de fato dirigindo a atriz, lhe dizendo como dar suas falas. Em mais de um momento a Albertina diretora entrevista a Albertina personagem sobre o seu processo de busca. Essa duplicação reflete uma fragmentação da identidade frente a uma memória dolorosa, traumática.


O estatuto de verdade do material coletado pela equipe em sua busca também é colocado em xeque. Albertina pouco se interessa pelos testemunhos da geração de seus pais, que descrevem os dois de forma idealizada - esses depoimentos costumam aparecer em off ou em segundo plano, em uma tela de televisão que invade o quadro conforme a câmera filma Couceyro, de costas para a imagem ou olhando para outro lugar. A incongruência dos relatos encontra sua ironia máxima nas falas dos vizinhos do bairro em que a família da diretora morou durante a clandestinidade, que os descrevem unanimemente como uma família de loiros, rubios, embora sejam todos morenos, colocando-os no lugar de estrangeiros. Em meio a esse emaranhado de relatos, cenas de animação em stop motion com bonecos playmobil encenam uma memória infantil de Albertina, e a representação de seus pais como bonecos sendo levados por um disco voador parece dar tanto ou mais conta de seu desaparecimento quanto os materiais documentais.


Há uma postura de insubmissão na forma como Carri aborda a memória de seus pais, que é especialmente manifesta na cena em que recebe uma recusa de financiamento para o filme, com a recomendação de que o projeto desse mais espaço às falas da geração de militantes dos anos 1970. Há uma demanda expressa da geração que viveu a ditadura de como esta deve ser lembrada, e o projeto de Albertina e sua equipe não se enquadra nela. Como destaca Fernando Seliprandy, trata-se de um filme “de filha” em que “a filha se recusa a herdar as versões preexistentes da memória, esforçando-se para esboçar, a todo custo, uma perspectiva que lhe seja própria.” (SELIPRANDY, 2018, p.146). Mais tarde, a diretora afirmou preferir falar em contágio do que em herança. Imagem fortemente ligada ao corpo, o contágio seria para ela uma forma mais potente, vital, de influência - frente a uma “herança” pesada, Carri preferiria ver em seus pais uma fonte de contágio, a qual ela elege, não herda (França; Gil Mariño; Guimarães, 2022).


É no curta-metragem Restos (2010), disponível online, que Albertina passa a demonstrar interesse pela história do cinema militante do país, povoada por filmes que desapareceram nos caminhos obscuros da clandestinidade, ou que hoje correm o risco de se perderem por falta de preservação adequada. “Acumular imagens é resistir?” se pergunta o filme. Sem uma cinemateca nacional, o cinema argentino é preservado em grande parte em coleções particulares, como o filme aponta. Neste curta, Carri submete rolos de filmes a processos diversos de apagamento: os filmes são riscados, queimados, tem sua emulsão dissolvida em água sanitária, apontando para a frágil materialidade do corpo do cinema. Uma narração over, também interpretada por Analía Couceyro, reflete sobre a relação das imagens com a memória e o desaparecimento. É também em Restos que Albertina faz uma relação direta entre o corpo do filme e o corpo humano, apontando um paralelismo entre os “desaparecimentos” que marcam as ditaduras militares de seu país e o desaparecimento do corpus do cinema argentino militante, que teve sua origem e circulação atravessadas pela ilegalidade. 

 

A ideia do título me interessou porque está diretamente relacionada com aquele período: com a falta de corpos. O fato de que, ao longo dos anos, com tanta informação e tanta conversa sobre os desaparecidos, essa questão da ausência física dos restos mortais tenha se perdido. O cinema, explicitamente, também é físico. (CARRI apud AON; GOMEZ, 2012, p. 2)

O interesse pelo cinema militante aparece novamente em Cuatreros (2016), quando a ideia de busca volta a guiar a narrativa fílmica, dessa vez disparada pela busca por um filme desaparecido, Los Velázquez, de Pablo Szir (filmado entre 1970 e 1972 e nunca estreado). O filme de Szir interessa a Carri porque teria sido baseado em um livro de seu pai, o sociólogo Roberto Carri. Tanto livro quanto filme são centralizados na figura de Isidro Velázquez, cuatrero, ou seja, ladrão de gados, bandido rural argentino, rebelde que teria sido considerado por Carri pai como “pré-revolucionário” (CARRI, 2001) e que foi assassinado pelo estado assim como Szir e os pais de Albertina. O filme de Szir não aparece, e Albertina narra em uma voz over suas próprias tentativas de narrar a vida de Velázquez no cinema, todas fracassadas.


Na imagem, vemos uma constelação de materiais de arquivo dos anos 1960 e 1970 das mais diferentes origens, montadas em paralelo na tela, que se divide para mostrar às vezes até cinco imagens simultâneas. São publicidades, filmes domésticos, reportagens de jornal, cinema militante, vídeos institucionais e filmes de ficção, entre outros. Esse excesso aparente se contrapõe à lacuna em torno da qual o filme se estrutura: a ausência do filme de Szir, a impossibilidade de narrativas que dêem conta da vida de Velázquez, e, essencialmente, a ausência dos pais de Carri.


Frente a essa falta, o excesso de imagens é reforçado pela onipresença da voz. A narração em over, que é interpretada pela própria Carri de forma próxima a um diário ou a um caderno de trabalho, ocupa quase a totalidade do som do filme, parando em raros momentos para deixar ouvir o som original dos arquivos. Na instalação que deu origem ao filme, era também uma atriz que lia o texto, Elisa Carricajo. A mudança é essencial pois coloca como elemento principal de Cuatreros o corpo da realizadora, deixando de lado os deslocamentos das obras anteriores. Albertina fala aos borbotões, o “fio da memória” se faz enchente, transborda, criando na própria experiência de assistir ao filme um desafio à memória do espectador. “Acumular imagens é resistir?”, a pergunta do curta Restos volta com força quando se assiste a Cuatreros. O excesso aqui oferece poucas respostas. Diante dele se sente “tão sozinho como o indivíduo diante da multidão”, como escreveu Arlette Farge sobre o arquivo judicial, pois “se pressente ao mesmo tempo a força do conteúdo e a impossibilidade de decifrá-lo, a ilusão de restituí-lo.” (FARGE, 2009, p.21).


Assim como em Los Rubios, nunca vemos a imagem dos pais de Albertina, e pouco descobrimos de novo sobre eles. A ausência dos corpos dos pais de Carri é contraposta a postura de midiatização do assassinato de Isidro Velázquez, após o qual a polícia fotografou e publicizou as imagens do corpo morto do rebelde – ato cautelar que, no entanto, elevou a sua imagem à figura de um mártir. Enquanto narra esses fatos, o corpo de Albertina se transforma. Pois agora, treze anos após Los Rubios, ela fala de uma nova posição, não mais apenas do lugar da filha órfã, mas também como mãe. Frente ao emaranhado de imagens fugidias do passado, a voz de Carri se faz presença e traz a narrativa do filme para o presente, para seu processo de gravidez e puerpério, seus conflitos com a vida doméstica, que se coloca por vezes como um empecilho para a memória e para o fazer artístico. Mas parece ser justamente essa passagem para um lugar de mãe que permite a Albertina um olhar para o futuro. Eventualmente, o turbilhão de imagens é substituído por uma tela única de material fílmico em estado avançado de decomposição – a ausência se impõe. A imagem espelha a narração, que fala em um ácido que parece corroer o corpo da diretora, conforme ela passa horas diante do projetor do Museo del Cine de Buenos Aires.


Na obra de Carri, os “silêncios históricos e pessoais” da geração de filhos de desaparecidos parece ecoar o lema feminista “o pessoal é político” (HANISCH, 1970), que por sua vez atinge uma nova dimensão para as identidades queer. A única imagem em Cuatreros que não é apropriada de outras fontes é justamente um vídeo de Carri com seu filho, e a narração acaba por afirmar a esfera da família como seu lugar de desobediência, de reivindicação. Uma família com duas mães e um pai, nos seus próprios moldes, mesmo após o fim do casamento com sua esposa. Só quando desiste de buscar seus pais nas imagens, Albertina pode seguir em frente. Mas o seguir em frente não é uma recusa à memória, ela carrega consigo o caso Velázquez como uma “receita romântica de resistência” deixada por seu pai, e as cartas que sua mãe mandava da prisão e os livros que recomendava a suas filhas como um mapa afetivo com o qual navegar. 


Referências

AON, L.; GÓMEZ, L. Entrevista a Albertina Carri y Fernando Martín Peña: “Si hay significante, no hay pasado”. Question/Cuestión, [S. l.], v. 1, n. 34, p. 1–5, 2012. Disponível em: https://perio.unlp.edu.ar/ojs/index.php/question/article/view/1453. Acesso em: 6 ago. 2023.


BARRENHA, Natalia e PIEDRAS, Pablo [orgs.]. Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo. Campinas: Editora Medita, 2014.


BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte húngaro” in LABAKI, Amir e MOURÃO, Maria Dora (orgs). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.


CARRI, Albertina. Operación fracaso y el sonido recobrado. Buenos Aires: Parque de la memoria, 2015. Catálogo de exposição.


CARRI, Roberto. Isidro Velázquez: formas prerrevolucionarias de la violencia. Buenos Aires: Editorial Colihue, 2001.


FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009.


FRANÇA, Andréa; GIL MARIÑO, Cecilia; GUIMARÃES, Patrícia Cunegundes. Por uma ecologia do arquivo: entrevista com Albertina Carri sobre seu filme Palabras Ajenas. Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, São Paulo, v. 11, n. 2, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.22475/rebeca.v11n2.903. Acesso em: 8 maio 2025.


HANISCH, Carol. The personal is political. In: FIRESTONE, Shulamith; KOEDT, Anne (Ed.). Notes from the Second Year: Women's Liberation. New York: Radical Feminism, 1970.


SELIPRANDY, Fernando. Documentário e memória intergeracional das ditaduras do Cone Sul. Tese de doutorado - Universidade de São Paulo, 2018.


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